Nessa parte da história, Vasalisa pediu o fogo a Baba Yaga, e a Yaga concorda se Vasalisa fizer, em troca, alguns serviços domésticos para ela. As tarefas psíquicas desse período de aprendizado são as seguintes: ficar com a Deusa Megera; aclimatar-se às imensas forças selvagens da psique feminina; chegar a reconhecer o poder dela (o seu poder) e os poderes das purificações interiores; limpar, escolher, alimentar, criar energia e idéias (lavar as roupas da Yaga, cozinhar para ela, limpar sua casa e separar os elementos).
Há não muito tempo, as mulheres se envolviam profundamente com os ritmos da vida e da morte. Elas aspiravam o cheiro acre do ferro no sangue fresco do parto. Elas também lavavam os corpos frios dos mortos. A psique da mulher moderna, especialmente daquelas provenientes de culturas industriais e tecnológicas, é muitas vezes privada dessas experiências básicas e abençoadas de natureza prática e íntima.
Existe, porém, um meio para que a não-iniciada participe dos aspectos sensíveis dos ciclos da vida e da morte.
Baba Yaga, a Mãe Selvagem, é a mestra que podemos consultar nesses casos. Ela instrui o ordenamento da casa da alma. Ela infunde uma ordem alternativa no ego, uma ordem em que a magia pode acontecer, a alegria pode ser criada, o apetite permanece intacto, as tarefas são realizadas com prazer. Baba Yaga é o modelo para sermos fiéis ao Self. Ela ensina tanto a morte quanto a renovação.
No conto de fadas, ela ensina a Vasalisa como cuidar da casa psíquica do feminino selvagem. Lavar as roupas da Yaga é um símbolo lendário. Nos países primitivos, e ainda hoje em dia, para lavar a roupa a pessoa descia até o rio e lá fazia as abluções rituais feitas desde o princípio dos tempos para renovar o tecido. Trata-se de um belo símbolo da limpeza e da purificação de toda a imagem da psique.
Na mitologia, tecido é fruto do trabalho das mães da vida-morte-vida. No Oriente, por exemplo, há as Três Parcas: Cloto, Láquesis e Atropos. No Ocidente há a Na’ ashjé’ii Asdzáá, a Mulher-aranha, que transmitiu ao povo navajo o dom da tecelagem. Essas mães da vida-morte-vida ensinam às mulheres a sensibilidade ao que deve morrer e ao que deve viver, ao que deve ser retirado com a carda e ao que deve ser aproveitado no tecido.
Na história, Baba Yaga encarrega Vasalisa de lavar sua roupa para que esse tecido — os padrões da deusa da vida-morte-vida — venha à luz, à consciência. Ao lavá-lo, ela o renova.
Lavar alguma coisa é um ritual de purificação atemporal, que não representa apenas a purificação. Ele também significa — como o batismo proveniente do latim baptiza — empapar, impregnar com uma força e um mistério numinosos.
No conto, a lavagem das roupas é a primeira tarefa. Ela simboliza repor em boas condições aquilo que perdeu a forma com o desgaste. As roupas são como nós, em que nos desgastamos cada vez mais até que nossas idéias e valores fiquem frouxos com o passar do tempo.
A renovação, a revivificação, ocorre na água, na redescoberta daquilo que realmente consideramos verdadeiro, daquilo que realmente consideramos sagrado.
No simbolismo dos arquétipos, os trajes representam a persona, a primeira impressão que o público tem de nós. A persona é uma espécie de camuflagem que permite que os outros conheçam de nós apenas o que nós queremos que eles conheçam, e nada mais. No entanto, existe um significado mais antigo da persona, encontrado em todos os ritos da América Central, um significado bem-conhecido das cantadoras y cuentistas. A persona não é apenas uma máscara atrás da qual a pessoa se esconde, mas, sim, uma presença que encobre a personalidade rotineira. Nesse sentido, a persona ou máscara é um indicador de hierarquia, virtude, caráter e autoridade. A persona é o significante exterior, a manifestação exterior de comando.
Gosto muito dessa tarefa iniciática na qual se exige que a mulher purifique as personas, o manto de autoridade da grande Yaga da floresta. Ao lavar as roupas da Yaga, a própria iniciada verá como são feitas as costuras da persona, que modelos os trajes seguem. Logo, ela mesma terá alguma quantidade dessas personas a serem penduradas no seu armário em meio a outras criadas por ela durante toda a vida.
É fácil imaginar que os símbolos de poder e autoridade da Yaga — suas roupas — tenham as mesmas qualidades que ela tem em termos psicológicos: a força, a resistência. Portanto, lavar sua roupa é uma metáfora através da qual aprendemos a
perceber e a adotar essa combinação de qualidades, bem como a saber como separar,
consertar e renovar essa qualidades pela purificatio, a lavagem das fibras do ser.
A tarefa seguinte é a de varrer o casebre e o quintal. Nos contos de fadas do leste europeu, as vassouras muitas vezes são feitas de gravetos de árvores e arbustos, e ocasionalmente das raízes de plantas rijas. O trabalho de Vasalisa consiste em passar esse objeto feito de matérias vegetais sobre o piso da casa e do quintal para manter o local limpo de resíduos. A mulher sábia mantém seu ambiente psíquico organizado. Ela consegue isso mantendo a cabeça limpa, mantendo um local limpo para seu trabalho e se dedicando a completar suas idéias e projetos.
Para muitas mulheres, essa tarefa exige que elas separem todos os dias algum tempo para a contemplação, que abram um espaço para habitar que seja nitidamente seu, com papel, canetas, tintas, ferramentas, conversas, tempo, liberdades que se destinam apenas a esse trabalho. Para muitas delas, a psicanálise e outras experiências de mergulho e transformação fornecem o local e o tempo especiais para esse trabalho. Cada mulher tem suas próprias preferências, seu próprio estilo. Se esse trabalho puder ser realizado no casebre de Baba Yaga, tanto melhor.
Mesmo perto do casebre é melhor do que longe dele. Seja como for, a vida selvagem de cada um tem de ser mantida em ordem com regularidade. Não é suficiente dedicar a ela um dia uma vez por ano.
No entanto, como é o casebre da Baba Yaga que Vasalisa varre, como se trata do quintal da Baba Yaga, estamos falando também da manutenção em ordem das idéias incomuns. São idéias que incluem o que é incomum, místico, da alma e amedrontador.
Varrer o ambiente significa não só começar a valorizar a vida não-superficial, mas também cuidar da sua organização. Às vezes, as mulheres se confundem quanto ao trabalho interior da alma e deixam de cuidar da sua arquitetura até que ela seja retomada pela floresta. Aos poucos, o mato vai crescendo e finalmente o local se transforma numa ruína arqueológica escondida na psique. A varredura cíclica evitará que isso ocorra. Quando a mulher dispõe de espaço livre, a natureza selvagem viceja melhor.
Para cozinhar para Baba Yaga, perguntamos literalmente como se alimenta a Baba Yaga da psique, o que se oferece a uma deusa tão selvagem. Em primeiro lugar, para cozinhar para a Yaga, acende-se o fogo — a mulher precisa estar disposta a arder, arder de paixão, arder com as palavras, com as idéias, com o desejo por não importa o quê que ela realmente aprecie. É de fato essa paixão que provoca o cozimento, e as idéias significativas da mulher são o alimento que é preparado. Para cozinhar para a Yaga, daremos um jeito para que nossa vida criativa tenha um fogo constante a aquecê-la.
Seria melhor para a maioria de nós se nos tornássemos mais competentes em vigiar o fogo que está por baixo do nosso trabalho, se observássemos com mais cuidado o processo de cozimento para a nutrição do Self selvagem. Infelizmente, muitas vezes voltamos as costas à panela, ao fogão. Esquecemo-nos de vigiar, esquecemo-nos de acrescentar lenha, esquecemo-nos de mexer. Pensamos erroneamente que o fogo e o ato de cozinhar são parecidos com algumas daquelas resistentes plantas domésticas que sobrevivem sem água oito meses até que um dia não agüentem mais. Não é bem assim. O fogo exige atenção porque é fácil deixar que ele se apague.
A Yaga precisa ser alimentada. E vai haver um barulho dos diabos se ela sentir fome. Portanto, é o cozimento de novas coisas, novos rumos, da dedicação à nossa arte e ao nosso trabalho que alimenta a alma selvagem permanentemente. É isso mesmo o que nutre a Velha Mãe Selvagem e lhe dá sustento na nossa psique. Sem o fogo, nossas grandes idéias, nossos pensamentos originais, nossos anseios e desejos continuam crus, e todo o mundo se sente frustrado. Por outro lado, qualquer coisa que façamos que tenha fogo irá agradar à Mãe Selvagem e manter a todas nós nutridas.
No desenvolvimento das mulheres, todas essas ações ligadas às “prendas domésticas”, cozinhar, lavar, varrer, significam algo além do rotineiro. Todas essas imagens sugerem modos de se pensar na vida da alma, de avaliá-la, alimentá-la, nutri-la, corrigi-la, purificá-la e organizá-la. Vasalisa recebe a iniciação em todos esses aspectos, e sua intuição a ajuda a realizar as tarefas. A natureza intuitiva dispõe da capacidade de estimar as situações num relance, de avaliar num átimo, de eliminar o entulho que cerca uma idéia e de identificar a essência, para lhe infundir vitalidade, cozinhar idéias cruas e preparar alimento para a psique. Vasalisa, através da boneca da intuição, está aprendendo a escolher, a compreender, a manter em ordem, a limpar e a arrumar o ambiente da psique.
Além disso, ela aprende que a Mãe Selvagem exige muito alimento para poder realizar seu trabalho. Não se pode impor a Baba Yaga uma dieta de folha de alface e café preto. Se quisermos nos aproximar da Mãe Selvagem, devemos perceber que ela tem apetite por certos alimentos. Se quisermos ter um relacionamento com o feminino ancestral, precisaremos cozinhar muito.
Com essas tarefas, Baba Yaga ensina e Vasalisa aprende a não se intimidar diante da escala do grande, do poderoso, do cíclico, do imprevisto, do inesperado, do vasto e do imenso, que é a escala da Natureza, do peculiar, do estranho e do incomum.
Os ciclos das mulheres de acordo com as tarefas de Vasalisa são os seguintes: limpar nosso pensamento, renovando nossos valores com regularidade; eliminar da nossa psique as insignificâncias, varrê-las, purificar nossos estados de pensamento e sentimento com regularidade; acender a fogueira criativa e cozinhar idéias num ritmo sistemático e especialmente, cozinhar muito para alimentar o relacionamento entre nós mesmos e a natureza selvagem.
Vasalisa, através do período passado com a Yaga, acabará incorporando algo do jeito e do estilo da Yaga. E nós também. Cabe a nós, dentro das nossas próprias limitações humanas, seguir seu exemplo. Isso nós aprendemos, apesar de ficarmos assombradas ao mesmo tempo, pois na terra de Baba Yaga há objetos que voam à noite e estão de pé ao nascer do sol, todos convocados pela natureza instintiva selvagem. Há os ossos dos mortos que ainda falam e há os ventos, os fados, os sóis, a lua e o céu, que vivem todos no enorme baú da Yaga. No entanto, ela mantém tudo em ordem. O dia vem depois da noite. Uma estação segue-se à outra. Ela não é aleatória. Ela tem pé e cabeça.
Na história, a Yaga descobre que Vasalisa completou todas as tarefas que lhe foram propostas e fica satisfeita, mas também um pouco decepcionada por não poder ralhar com a menina. E assim, só para se certificar de que Vasalisa não ficasse confiante demais, Baba Yaga diz mais ou menos o seguinte: “Bem, só porque você conseguiu fazer o serviço uma vez, não quer dizer que você vai conseguir de novo. Por isso, tenho mais um dia de tarefas para você. Vamos ver como você se sai, queridinha… se não…”
Mais uma vez, Vasalisa cumpre as tarefas, recorrendo à capacidade da orientação intuitiva e a Yaga lhe concede a contragosto uma aprovação mal-humorada… daquele tipo que sempre vem de uma mulher mais velha que já viveu muito e viu muitas coisas, que até certo ponto preferia não ter vivido e visto tanto e, ao mesmo tempo, sente orgulho disso.
Mulheres Que Correm Com Lobos, por Clarissa Pinkola Estés.
Foto: Spooky