Os sapatinhos vermelhos feitos à mão

Na história, sabemos que a menina perde os sapatos vermelhos criados por ela mesma, aqueles que a faziam se sentir rica ao seu próprio modo. Ela era pobre, porém criativa. Estava encontrando seu jeito de ser. Havia passado da condição de não ter sapato nenhum à de ter sapatos que lhe proporcionavam um sentido de força espiritual apesar das dificuldades da sua vida concreta. Os sapatinhos feitos à mão são símbolos da sua ascensão de uma existência psíquica insignificante para uma vida emotiva projetada por ela mesma. Seus sapatos representam um passo enorme e literal no sentido da integração da sua engenhosa natureza feminina na rotina do seu dia-a-dia. Não importa que sua vida seja imperfeita. Ela tem sua alegria. Ela irá evoluir.

Nos contos de fadas, podemos compreender essa personagem tipicamente pobre porém criativa, como um motivo psicológico daquele que é rico em espírito e que lentamente adquire maior conscientização e maior poder com o passar do tempo.
Seria possível dizer que essa personagem retrataria exatamente todas nós, pois todas avançamos lentamente, mas com segurança. Sob o aspecto social, os sapatos transmitem um sinal: são um meio de distinguir um tipo de pessoa de outro tipo. Os artistas costumam usar sapatos que são completamente diferentes daqueles usados, digamos, por engenheiros. Os sapatos podem expressar algo a respeito de como somos, às vezes até de quem aspiramos ser, da persona que estamos experimentando.
O simbolismo arquetípico dos sapatos remonta à antiguidade, quando  os sapatos eram um sinal de autoridade: os governantes os possuíam, os escravos não.
Mesmo hoje em dia, grande parte do mundo moderno aprende a avaliar exageradamente a inteligência e a capacidade de uma pessoa com base no fato de ele ou ela usar sapatos ou não, assim como no fato de essa pessoa que possui sapatos estar “bem-calçada” ou não.
Essa versão da história tem origem nos frios países do norte nos quais os sapatos são vistos como instrumentos de sobrevivência. Quando os pés são mantidos secos e aquecidos, eles permitem a sobrevivência da pessoa em condições extremas de frio e umidade. Lembro-me de que minha tia me contava que roubar o único par de sapatos de uma pessoa no inverno era um crime equivalente ao assassinato. A natureza apaixonada e criativa da mulher corre o mesmo risco se ela não puder se agarrar às suas fontes de alegria e crescimento. Elas são o seu calor, a sua proteção.
O símbolo dos sapatos pode ser interpretado como uma metáfora psicológica. Eles protegem e defendem o que é a nossa base — os nossos pés. No simbolismo dos arquétipos, os pés representam mobilidade e liberdade. Nesse sentido, ter sapatos para cobrir os pés é ter convicção nas nossas crenças e ter os meios necessários para segui-las. Sem sapatos psíquicos, a mulher é incapaz de transpor ambientes subjetivos ou objetivos que exijam perspicácia, bom senso, cautela e firmeza.
A vida e o sacrifício andam juntos. O vermelho é a cor da vida e do sacrifício. Para levar uma vida vibrante, precisamos fazer sacrifícios de diversos tipos. Se você quer ir para a universidade, deverá sacrificar tempo e dinheiro e dedicar uma concentração enorme a essa opção. Se você quiser criar, precisará sacrificar a superficialidade, alguma segurança e, com freqüência, seu desejo de ser apreciada, para fazer vir à tona seus insights mais fortes, suas visões mais amplas.
Os problemas surgem quando há muito sacrifício, mas nenhuma vida brota disso tudo. Nesse caso, o vermelho é a cor da perda de sangue, em vez de ser a cor da vida do sangue. É exatamente isso o que ocorre na história. Perde-se um tipo de vermelho vibrante e amado quando os sapatinhos feitos à mão são queimados. Isso detona na menina um anseio, uma obsessão e, finalmente, uma dependência do outro tipo de vermelho: o das emoções baratas e  velozes; o do sexo sem alma, aquele que leva a uma vida sem significado.
Portanto, ao interpretar todos os aspectos do conto de fadas como componentes da psique de uma única mulher, podemos concluir que a confecção dos sapatos vermelhos pela própria criança representa um feito importante: a menina retira sua vida do  status de escrava/descalça — a de quem cuida da própria vida, com os olhos voltados para o chão, sem olhar nem para a direita nem para esquerda  — para uma conscientização que faz uma pausa para  criar, que nota a beleza e sente alegria, que sente paixão e registra a satisfação… bem como tudo o que compõe a natureza essencial a que chamamos de selvagem.
O fato de os sapatos serem vermelhos indica que o processo será de uma vida vibrante, o que inclui o sacrifício. Isso é justo e correto. O fato de esses sapatos serem feitos à mão e formados de retalhos demonstra que a criança simboliza o espírito criativo, que, sendo órfã e não tendo recebido ensinamentos por quaisquer motivos, conseguiu reunir os  pedacinhos e formar os sapatos usando sua percepção inata.
Muito bem! Uma bela e veemente afirmação.
Se ela tivesse sido deixada em paz, essa situação teria um progresso agradável para o self criativo. Na história, a menina está feliz com sua obra, com o fato de ter conseguido executá-la, o fato de ter tido paciência para procurar e acumular retalhos, para criar a forma, reunir os pedaços e combiná-los, para manifestar suas idéias. Não importa que a princípio o resultado seja grosseiro. Muitos dos deuses da  criação em todas as culturas e através dos séculos não criaram com perfeição logo da primeira vez. A primeira tentativa pode sempre receber aperfeiçoamentos, assim como a segunda e muitas vezes a terceira e também a quarta. Isso não tem nada a ver com a nossa habilidade e talento. É simplesmente a vida, evocativa e em evolução. Contudo, se a criança for deixada em paz, ela fará outro par de sapatos vermelhos, mais um e ainda outro, até que eles não saiam tão grosseiros. Ela irá progredir. No entanto, ainda  superior à sua maravilhosa exibição de engenhosidade e à capacidade de prosperar em circunstâncias difíceis, o fato notável é que esses sapatos feitos por ela lhe proporcionaram uma alegria imensa, e a alegria é a seiva da vida, o alimento do espírito e a vida da alma reunidos num só.
A alegria é o tipo de sensação que a mulher experimenta quando ela põe as palavras no papel daquele jeito exato, ou acerta as notas  al punto, como queria, logo da primeira vez.
Uau! É incrível. É o tipo de emoção que a mulher  sente ao descobrir que está grávida quando é isso o que deseja. É o tipo de alegria que a mulher sente quando vê as pessoas que ama se divertindo. É aquela alegria que ela sente quando realizou alguma coisa na qual insistiu muito, que envolveu sentimentos  fortes, algo que a fez se arriscar, algo que a fez se esforçar e se superar para conseguir  — talvez com elegância, talvez não, mas com sucesso. Criou aquele algo, aquele alguém, a arte, a luta, o momento: sua vida. Esse é o estado de ser natal e instintivo da mulher. A Mulher Selvagem transparece nesse tipo de alegria. Situações comoventes dessa natureza convocam a Mulher Selvagem pessoalmente.
No entanto, na história, como preferiu o destino, um dia, para se contrapor diretamente aos modestos sapatos vermelhos feitos de retalhos, à simples alegria de viver, chega rolando e estalando à vida da menina uma carruagem dourada.

Mulheres Que CorremCom Lobos, por Clarissa Pínkola Estés

Foto: Wendy Gratz

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