O assombro e a dor da volta ao lar selvagem consistem em podermos fazer uma visita, sem que possamos ficar. Não importo quanto seja maravilhoso o lar mais profundo imaginável, não podemos ficar debaixo d’água para sempre, mas precisamos voltar à superfície. Como Ooruk, que é delicadamente colocado no litoral rochoso, nós voltamos à nossa vida diária impregnadas com um novo ânimo. Mesmo assim, é triste o momento em que somos deixadas na praia, mais uma vez sozinhas.
Em antigos ritos místicos, os iniciados que voltavam ao mundo exterior também eram sujeitos a uma sensação agridoce. Sentiam-se alegres e renovados, mas a princípio, também um pouco saudosos.
O bálsamo para essa pequena tristeza é dado quando a mulher-foca dá instruções ao filho. “Estou sempre com você. Basta que você toque algum objeto que eu toquei, minhas varinhas de fogo, minha ulu, faca, minhas esculturas de pedra de focas e lontras, e eu soprarei nos seus pulmões um fôlego especial para que você cante suas canções.” Suas palavras são um tipo especial de promessa do mundo selvagem. Elas querem dizer que não deveríamos perder muito tempo ansiando por voltar. Em vez disso, se compreendermos essas ferramentas, se interagirmos com elas, sentiremos a sua presença, como se fôssemos um couro de tambor acionado por uma mão selvagem.
O povo inuit caracteriza essas ferramentas como as que pertencem a uma “mulher de verdade”. Elas são o que a mulher precisa para “esculpir uma vida para si mesma”. Sua faca corta, desbasta, libera, recorta e faz com que os materiais se ajustem. Seu conhecimento das varinhas de fogo permitem que ela faça fogo mesmo nas condições mais adversas. Suas esculturas de pedra transmitem seu conhecimento místico, seu repertório para a cura e sua união pessoal com o mundo espiritual.
Em termos psicológicos, essas metáforas caracterizam as forças comuns à natureza selvagem. Na psicologia junguiana tradicional, alguns poderiam chamar essa união em série de eixo do ego-self. No jargão dos contos de fadas, a faca é, entre outras coisas, um instrumento visionário para abrir um corte na obscuridade e examinar o que está oculto. Os instrumentos para fazer fogo representam a capacidade de produzir alimento para si mesma, para transformar a vida antiga em vida nova, para repelir o negativismo e para dar têmpera a certos materiais. A confecção de amuletos e talismãs ajuda a heroína e o herói dos contos de fadas a lembrar que as forças do mundo selvagem estão bem próximas.
Para a mulher moderna, a ulu, a faca, simboliza seu insight, sua disposição e sua capacidade de eliminar o supérfluo, de criar finais nítidos e abrir novos começos.
O fogo que ela sabe fazer demonstra sua capacidade de se erguer a partir do fracasso, de criar paixão por si mesma, de reduzir algo a cinzas, se necessário. Suas esculturas de pedra encarnam a lembrança que ela tem da sua própria consciência selvagem, da sua união com a vida instintual natural.
Como o filho da mulher-foca, aprendemos que chegar perto das criações da mãe da alma significa encher os pulmões com ela. Muito embora ela tenha voltado para sua própria gente, sua força total pode ser sentida através dos poderes femininos do insight, da paixão e do vínculo com a natureza selvagem. Ela promete que, se entrarmos em contato com os instrumentos da força psíquica, passaremos a sentir seu pneuma. Seu alento penetra no nosso sopro, e ficamos impregnadas com um vento sagrado para o canto. Os antigos inuits dizem que o sopro de um deus e o sopro de um ser humano, quando mesclados, fazem com que a pessoa crie uma poesia densa e sagrada.
É essa poesia e esse canto sagrados o que procuramos. Queremos palavras e canções poderosas que possam ser ouvidas em terra firme e debaixo d’água. Estamos à procura do canto selvagem, da nossa chance de usar a linguagem selvagem que estamos aprendendo no fundo do mar. Quando a mulher transmite a sua verdade, quando atiça suas intenções e sentimentos, quando se mantém fiel à natureza instintiva, ela está cantando, está vivendo na corrente do vento selvagem da alma.
Esse estilo de vida é um ciclo em si, um ciclo destinado a continuar, continuar e continuar.
É por isso que Ooruk não tenta mergulhar de volta, nem pede à sua mãe que o deixe acompanhá-la quando ela se afasta mar adentro e desaparece. É por isso que ele fica em terra firme. Ele ouviu a promessa. À medida que voltamos ao mundo tagarela, especialmente se ficamos de algum modo isolados durante nossa viagem de volta ao lar, as pessoas, as máquinas e outros objetos nos dão uma impressão ligeiramente estranha, e até mesmo a conversa dos que nos cercam nos parece um pouco singular. Essa fase do retorno é chamada de reentrada, e é natural. A sensação de pertencer a um mundo diferente passa depois de algumas horas ou de alguns dias.
Daí em diante, dedicaremos uma boa parcela de tempo à nossa vida mundana, estimulada pela energia acumulada na viagem ao nosso lar e na união temporária com a alma através da prática da solidão.
Na história, o filho da mulher-foca começa a encarnar a natureza medial. Ele se torna tocador de tambor, cantor, contador de histórias. Na interpretação dos contos de fadas, quem toca o tambor se transforma no coração situado no centro de qualquer nova vida e novo sentimento que precise surgir e reverberar. O tocador de tambor consegue espantar as coisas para longe, da mesma forma que consegue evocá-las. O cantor transporta mensagens da grande alma para o self mundano e vice-versa.
Pela natureza e pelo tom da sua voz, o cantor pode desarmar, destruir, construir e criar. Diz-se que o contador de histórias se esgueirou até perto dos deuses e ficou ouvindo enquanto eles falavam dormindo.
Portanto, com todos esses atos criativos, o filho vivencia o que a mulher-foca instilou nele. O filho vive o que aprendeu debaixo d’água, a vida relacional com a alma selvagem. Descobrimo-nos, então, repletas de toques de tambor, repletas de cantos, repletas das nossas próprias palavras, que ouvimos e transmitimos: novos poemas, novos modos de ver, novos modos de agir e de pensar. Em vez de tentar “fazer com que o momento mágico dure”, nós simplesmente o vivemos. Em vez de oferecer resistência ao trabalho da nossa escolha, ou de ter pavor dele, nós mergulhamos nele com facilidade, vivas, cheias de novas idéias e curiosas para ver o que virá a seguir. Afinal de contas, a pessoa que está retornando sobreviveu a ser carregada mar adentro pelos grandes espíritos das focas.
Mulheres Que Correm Com Lobos, por Clarissa Pínkola Estés.
Foto: Johnathaneric