Os lobos são bons nos relacionamentos. Qualquer um que os tenha observado sabe como são profundos seus vínculos. É freqüente que os parceiros sejam para toda a vida. Muito embora entrem em conflito, muito embora exista a discórdia, os vínculos entre eles permitem que ultrapassem invernos rigorosos, primaveras abundantes, longas caminhadas, novas ninhadas, antigos predadores, danças tribais e cantos em coro. As necessidades relacionadas dos seres humanos não diferem em nada.
Embora a vida instintiva dos lobos inclua a lealdade e vínculos permanentes de confiança e devoção, os seres humanos às vezes enfrentam dificuldades com essas questões. Se quiséssemos usar termos arquetípicos para descrever o que determina os fortes vínculos entre os lobos, poderíamos concluir que a integridade dos seus relacionamentos advém da sua submissão à antiga natureza da vida-morte-vida. A natureza da vida-morte-vida é um ciclo de animação, desenvolvimento, declínio e morte que sempre se faz seguir de uma reanimação. Esse ciclo afeta toda vida física e todas as facetas da vida psicológica. Tudo — o Sol, as estrelas novas e a Lua, assim como as questões dos seres humanos e as das menores criaturas, como células e átomos — possui essa característica de agitação, hesitação e novamente agitação.
Diferentemente dos seres humanos, os lobos não consideram que os altos e baixos da vida, quer de energia, de poder, de alimento, quer de oportunidade, sejam espantosos ou punitivos. Os picos e os vales simplesmente existem, e os lobos passeiam por eles com a máxima eficácia e facilidade possível. A natureza instintiva tem a capacidade miraculosa de sobreviver a cada dádiva positiva, a cada conseqüência negativa, e ainda manter o relacionamento com o self e com o outro.
Entre os lobos, os ciclos da vida-morte-vida da natureza e do destino são encarados com elegância, inteligência e persistência para ficar junto do outro e viver por muito tempo e o melhor possível. No entanto, para que os seres humanos vivam dessa forma corretíssima e sejam leais desse jeito que é o mais sábio, o mais duradouro e o mais sensível, é preciso que se enfrente aquilo que mais se teme. Não há meio de escapar, como veremos. Teremos de dormir com a morte.
A Mulher-Esqueleto é uma história de caça a respeito do amor. Nas histórias do norte, o amor não é um encontro romântico entre dois amantes. As histórias das regiões próximas ao pólo descrevem o amor como a união entre dois seres cuja força reunida permite a um deles, ou a ambos, a entrada em comunicação com o mundo da alma e a participação no destino como uma dança com a vida e a morte.
Para compreender esta história, temos de entender que lá, num dos ambientes mais rigorosos e numa das culturas de caça mais notáveis do planeta, o amor não significa um flerte ou uma procura de mero prazer para o ego, mas um vínculo visível composto da força psíquica da resistência, uma união que prevalece na fartura ou na austeridade, que passa pelos dias e noites mais simples e mais complicados. A união de dois seres é considerada angakok, mágica em si mesma, como um relacionamento através do qual “os poderes que existem” se tornam conhecidos aos dois indivíduos.
Existem, porém, exigências para esse tipo de união. A fim de criar esse amor duradouro, convida-se mais um parceiro para a união. Esse terceiro é a Mulher-Esqueleto. Ela é também chamada de A Morte e, nesse sentido, ela é a natureza da vida-morte-vida num dos seus muitos disfarces. Nessa sua apresentação, A Morte não é um mal, mas uma divindade.
Num relacionamento, ela desempenha o papel do oráculo que sabe quando chegou a hora de um ciclo começar e terminar. Nessa qualidade, ela é o aspecto selvático do relacionamento, aquele do qual os homens têm mais pavor… e às vezes as mulheres, pois, quando se perdeu a fé na transformação, os ciclos naturais de progresso e de desgaste também são temidos.
Para que se crie um amor duradouro, a Mulher-Esqueleto precisa ser aceita no relacionamento e abraçada pelos dois amantes. Aqui, nesta antiga história do povo inuit, estão os estágios psíquicos para o domínio desse abraço. Quem me passou essa história foi Mary Uukalat. Examinemos as imagens que surgem da sua fumaça.
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A Mulher-Esqueleto
Ela havia feito alguma coisa que seu pai não aprovava, embora ninguém mais se lembrasse do que havia sido. Seu pai, no entanto, a havia arrastado até os penhascos, atirando-a ao mar. Lá, os peixes devoraram sua carne e arrancaram seus olhos. Enquanto jazia no fundo do mar, seu esqueleto rolou muitas vezes com as correntes.
Um dia um pescador veio pescar. Bem, na verdade, em outros tempos muitos costumavam vir a essa baía pescar. Esse pescador, porém, estava afastado da sua colônia e não sabia que os pescadores da região não trabalhavam ali sob a alegação de
que a enseada era mal-assombrada.
O anzol do pescador foi descendo pela água abaixo e se prendeu — logo em quê! — nos ossos das costelas da Mulher-Esqueleto. O pescador pensou: “Oba, agora peguei um grande de verdade! Agora peguei um mesmo!” Na sua imaginação, ele já via quantas pessoas esse peixe enorme iria alimentar, quanto tempo sua carne duraria, quanto tempo ele se veria livre da obrigação de pescar. E enquanto ele lutava com esse enorme peso na ponta do anzol, o mar se encapelou com uma espuma agitada, e o caiaque empinava e sacudia porque aquela que estava lá embaixo lutava para se soltar. E quanto mais ela lutava, tanto mais ela se enredava na linha. Não importa o que fizesse, ela estava sendo inexoravelmente arrastada para a superfície, puxada pelos ossos das próprias costelas.
O pescador havia se voltado para recolher a rede e, por isso, não viu a cabeça calva surgir acima das ondas, não viu os pequenos corais que brilhavam nas órbitas
do crânio e não viu os crustáceos nos velhos dentes de marfim. Quando ele se voltou com a rede nas mãos, o esqueleto inteiro, no estado em que estava, já havia chegado à
superfície e caía suspenso da extremidade do caiaque pelos dentes incisivos.
— Agh! — gritou o homem, e seu coração afundou até os joelhos, seus olhos se esconderam apavorados no fundo da cabeça e suas orelhas arderam num vermelho
forte.
— Agh! — berrou ele, soltando-a da proa com o remo e começando a remar loucamente na direção da terra. Sem perceber que ela estava emaranhada na sua linha, ele ficou ainda mais assustado pois ela parecia estar em pé, a persegui-lo o tempo todo até a praia. Não importava de que jeito ele desviasse o caiaque, ela continuava ali atrás. Sua respiração formava nuvens de vapor sobre a água, e seus braços se agitavam como se quisessem agarrá-lo para levá-lo para as profundezas.
— Aaagggggghhhh! — uivava ele, quando o caiaque encalhou na praia. De um salto ele estava fora da embarcação e saía correndo agarrado à vara de pescar. E o cadáver branco da Mulher-Esqueleto, ainda preso à linha de pescar, vinha aos solavancos bem atrás dele. Ele correu pelas pedras, e ela o acompanhou. Ele atravessou a tundra gelada, e ela não se distanciou. Ele passou por cima da carne que havia deixado a secar, rachando-a em pedaços com as passadas dos seus mukluks.
O tempo todo ela continuou atrás dele, na verdade até pegou um pedaço do peixe congelado enquanto era arrastada. E logo começou a comer, porque há muito, muito tempo não se saciava. Finalmente, o homem chegou ao seu iglu, enfiou-se direto no túnel e, de quatro, engatinhou de qualquer jeito para dentro. Ofegante e soluçante, ele ficou ali deitado no escuro, com o coração parecendo um tambor, um tambor enorme. Afinal, estava seguro, ah, tão seguro, é, seguro, graças aos deuses, Raven, é, graças a Raven, é, e também à todo-generosa Sedna, em segurança, afinal.
Imaginem quando ele acendeu sua lamparina de óleo de baleia, ali estava ela — aquilo — jogada num monte no chão de neve, com um calcanhar sobre um ombro, um joelho preso nas costelas, um pé por cima do cotovelo.
Mais tarde ele não saberia dizer o que realmente aconteceu. Talvez a luz tivesse suavizado suas feições; talvez fosse o fato de ele ser um homem solitário. Mas sua respiração ganhou um quê de delicadeza, bem devagar ele estendeu as mãos encardidas e, falando baixinho como a mãe fala com o filho, começou a soltá-la da linha de pescar.
— Oh, na, na, na. — Ele primeiro soltou os dedos dos pés, depois os tornozelos.
— Oh, na, na, na. — Trabalhou sem parar noite adentro, até cobri-la de peles para aquecê-la, já que os ossos da Mulher-Esqueleto eram iguaizinhos aos de um ser
humano.
Ele procurou sua pederneira na bainha de couro e usou um pouco do próprio cabelo para acender mais um foguinho. Ficou olhando para ela de vez em quando enquanto passava óleo na preciosa madeira da sua vara de pescar e enrolava novamente sua linha de seda. E ela, no meio das peles, não pronunciava palavra — não tinha coragem — para que o caçador não a levasse lá para fora e a jogasse lá embaixo nas pedras, quebrando totalmente seus ossos.
O homem começou a sentir sono, enfiou-se nas peles de dormir e logo estava sonhando. Às vezes, quando os seres humanos dormem, acontece de uma lágrima escapar do olho de quem sonha. Nunca sabemos que tipo de sonho provoca isso, mas sabemos que ou é um sonho de tristeza ou de anseio. E foi isso o que aconteceu com o homem.
A Mulher-Esqueleto viu o brilho da lágrima à luz do fogo, e de repente ela sentiu uma sede daquelas. Ela se aproximou do homem que dormia, rangendo e retinindo, e pôs a boca junto à lágrima. Aquela única lágrima foi como um rio, que ela bebeu, bebeu e bebeu até saciar sua sede de tantos anos.
Enquanto estava deitada ao seu lado, ela estendeu a mão para dentro do homem que dormia e retirou seu coração, aquele tambor forte. Sentou-se e começou a batucar dos dois lados do coração: Bom, Bomm!… Bom, Bomm!
Enquanto marcava o ritmo, ela começou a cantar em voz alta.
— Carne, carne, carne! Carne, carne, carne! — E quanto mais cantava, mais seu corpo se revestia de carne. Ela cantou para ter cabelo, olhos saudáveis e mãos boas e gordas. Ela cantou para ter a divisão entre as pernas e seios compridos o suficiente para se enrolarem e dar calor, e todas as coisas de que as mulheres precisam.
Quando estava pronta, ela também cantou para despir o homem que dormia e se enfiou na cama com ele, a pele de um tocando a do outro. Ela devolveu o grande tambor, o coração, ao corpo dele, e foi assim que acordaram, abraçados um ao outro, enredados da noite juntos, agora de outro jeito, de um jeito bom e duradouro.
As pessoas que não conseguem se lembrar de como aconteceu sua primeira desgraça dizem que ela e o pescador foram embora e sempre foram bem alimentados pelas criaturas que ela conheceu na sua vida debaixo d’água. As pessoas garantem que é verdade e que é só isso o que sabem.
Mulheres Que Correm Com Lobos, de Clarissa Pínkola Estés.
Foto: Quite Peculiar
por favor, é um trecho do livro “Mulheres que correm com lobos” que está registrado aqui?
Oi Carmen, sim. Os créditos estão abaixo. Obrigada.