Em todas as histórias, há material que pode ser compreendido como um espelho a refletir as enfermidades ou a saúde da nossa própria vida interior. Também nas lendas ocorrem temas míticos que podem ser considerados como descrições dos estágios e das instruções necessárias para a manutenção do equilíbrio tanto no mundo objetivo quanto no subjetivo.
Embora pudéssemos interpretar a história da Mulher-Esqueleto como símbolo dos movimentos dentro de uma única psique, creio que essa história tem seu maior valor quando é compreendida como uma série de sete tarefas que ensinam uma alma a amar outra profundamente.
São elas a descoberta da outra pessoa como uma espécie de tesouro espiritual, muito embora a princípio não se perceba exatamente o que foi encontrado. Em seguida, na maioria dos relacionamentos, vem a caça e a tentativa de ocultação, um tempo de esperanças e receios para os dois lados. Depois, vem a tarefa de desenredar e compreender os aspectos da vida-morte-vida do relacionamento e a compaixão dessa tarefa. Segue-se a confiança que gera o relaxamento, a capacidade de descansar na presença do outro e da sua boa vontade, acompanhada de um período de compartilhamento dos sonhos futuros bem como de tristezas passadas, sendo esse o início da cura de ferimentos arcaicos relacionados ao amor. Finalmente, o uso do coração para fazer brotar uma nova vida e a fusão do corpo e da alma.
A primeira tarefa, a descoberta do tesouro, encontra-se em dezenas de lendas de todo o planeta que descrevem a captura de uma criatura do fundo do mar. Quando isso ocorre na narrativa, sabemos sempre que uma grande luta logo irá se realizar entre o que vive no mundo objetivo e o que vive ou o que foi, por meio de repressão, forçado a viver no mundo subterrâneo. Nesta história, o pescador pega mais do que ele jamais esperou. “Epa, esse é grande”, pensa ele, quando se volta para recolher a rede.
Ele não se dá conta de estar trazendo à superfície a criatura mais apavorante que jamais conheceu, de estar trazendo mais do que ele tem condição de manejar. Ele não sabe que terá de se entender com a criatura, que está a ponto de ter todos os seus poderes testados. E o que é pior, ele não sabe que não sabe. É esse o estado de todos os apaixonados no início: são todos cegos como morcegos.
Os seres humanos imprudentes são propensos a se acercar do amor do mesmo jeito que o pescador da história encara o que apanhou: “Ah, espero apanhar um bem grande, um que me alimente por muito tempo, um que seja interessante, que facilite minha vida, do qual eu possa me gabar com todos os outros caçadores do meu lugar.”
É esse o movimento natural do caçador ingênuo ou esfaimado. Os muitos jovens, os não-iniciados, os famintos e os feridos têm valores que giram em torno da descoberta e conquista de troféus. Os muito jovens ainda não sabem exatamente o que estão procurando; os famintos buscam o sustento e os feridos procuram a compensação por perdas anteriores. No entanto, todos querem que o tesouro “caia por acaso” dos céus.
Quando estamos na companhia das grandes forças da psique, nesse caso da mulher da vida-morte-vida, e se somos ingênuos, então, sem dúvida, vamos receber mais do que o que estávamos procurando. É muito freqüente que nos entreguemos à fantasia de que seremos alimentados a partir da natureza profunda, por meio de um caso de amor, um emprego ou de dinheiro, e esperamos que essas rações durem muito tempo. Preferíamos não ter de trabalhar mais. Na realidade, há ocasiões nas quais gostaríamos de receber alimento sem realizar muito. No fundo, sabemos que nada de valor jamais surge dessa maneira. Mas temos esse desejo assim mesmo.
Ficar deitado inerte, apenas sonhando com um amor perfeito, é fácil. É uma espécie de anestesia da qual talvez não nos recuperemos nunca, a não ser para agarrar impiedosamente algo de valor, apesar de estar além da nossa percepção. Para os ingênuos e os feridos, o milagre dos caminhos da psique está em que, mesmo que você não se empenhe muito, que você seja irreverente, que não tenha essa intenção, que realmente nem esperasse por isso, que não queira, que não se sinta digno, que não se sinta pronto, você de qualquer jeito irá topar, por acaso, com o tesouro. Depois, cabe à sua alma a tarefa de não ignorar o que veio à tona, de reconhecer o tesouro pelo que ele for, não importando o quanto sua apresentação for inusitada, e de refletir com cuidado acerca do que fará em seguida.
A imagem do pescador tem algum simbolismo arquetípico em comum com a do caçador; e as duas representam, entre muitas coisas, os elementos psicológicos dos seres humanos que procuram saber, que lutam para nutrir o self por meio da fusão com a natureza instintiva.Nas histórias, assim como na vida, o caçador e o pescador começam sua saga com uma dentre três atitudes: a atitude de respeito sagrado, a de perversidade ou a desajeitada.
Na história da Mulher-Esqueleto, vemos que o pescador é um pouco desajeitado. Ele não é perverso, mas tampouco tem uma atitude ou intenção de respeito sacro.
Às vezes, os amantes começam do mesmo modo. No início do relacionamento, estão só à procura de um pouco de emoção, ou de uma dose antidepressiva de uma “companhia para me ajudar a passar a noite”. Sem que percebam, eles desavisadamente penetram numa parte da sua própria psique e da psique do outro habitada pela Mulher-Esqueleto. Embora seus egos possam estar à procura do prazer, esse espaço psíquico é terreno sagrado para a Mulher-Esqueleto. Se sairmos a pescar nessas águas, podemos ter certeza de que a fisgaremos.
O pescador considera que está apenas em busca de nutrição e de alimento, quando na realidade está trazendo das profundezas a natureza feminina por inteiro, a esquecida natureza da vida-morte-vida. Ela não pode ser ignorada, pois onde quer que tenha início uma vida nova, a Rainha da Morte aparece.
Quando isso ocorre, pelo menos naquele instante, as pessoas prestam uma atenção temerosa e enlevada.
Na temática, a Mulher-Esqueleto é semelhante a Sedna, outra imagem da vida-morte-vida da mitologia do povo inuit.
O pai de Sedna a jogou por sobre a borda do seu caiaque porque, ao contrário de outras irmãs obedientes da sua tribo, ela havia fugido com um homem-cão. Como o pai do conto de fadas “A donzela sem mãos”, o pai de Sedna decepou-lhe as mãos. Seus dedos e braços caíram no fundo do mar, onde se transformaram em peixes, focas e outras formas de vida que deram o sustento ao povo inuit desde então.
O que sobrou de Sedna também caiu no fundo do mar. Ali, ela se tornou só ossos e uma longa cabeleira. Nos rituais do povo inuit, os xamãs que vêm para a terra, nadam até ela, trazendo alimentos de paz para aplacar seu guardião rosnador, o marido-cão. Os xamãs penteiam seus longos cabelos enquanto cantam para ela, implorando-lhe que cure a alma ou o corpo de uma pessoa lá em cima, pois ela é a grande angakok, mágica. Ela é o grande portão norte da Vida e da Morte.
A Mulher-Esqueleto, que passou uma eternidade debaixo d’água, também pode ser compreendida como a força da vida-morte-vida de uma mulher que tenha sido mal utilizada ou que tenha ficado sem uso. Em sua forma essencial exumada, ela governa a capacidade intuitiva e emotiva de completar os ciclos vitais de nascimentos e encerramentos, de lamentações e festejos. Ela é a que observa as coisas. Ela sabe dizer quando chegou a hora de um lugar, uma coisa, um ato, um grupo ou um relacionamento morrer. Esse dom, essa sensibilidade psicológica, aguarda aqueles que se disponham a soerguê-la ao nível do consciente pelo ato de amar o outro.
Uma parte de cada mulher e de cada homem resiste ao reconhecimento de que a morte deve participar de todos os relacionamentos de amor. Nós fingimos que podemos amar sem que morram nossas ilusões acerca do amor, fingimos que podemos prosseguir sem que morram nossas expectativas superficiais, fingimos que podemos ir em frente e que nossas emoções preferidas nunca morrerão. No amor, porém, em termos psíquicos, tudo é dissecado — tudo. O ego não quer que isso ocorra.
No entanto, é assim que deve ser, e a pessoa provida de uma natureza profunda e selvagem é inegavelmente atraída pela tarefa.
O que morre? As ilusões, as expectativas, a voracidade de querer tudo, de querer que tudo seja só lindo, tudo isso morre. Como o amor sempre provoca uma descida até a natureza da morte, podemos perceber por que é preciso grande poder sobre si mesmo e plenitude de alma para assumir esse compromisso. Quando uma pessoa se dedica a amar, ela também está se dedicando a ressuscitar a Mulher-Esqueleto e todos os seus ensinamentos.
O pescador na história demora para perceber a natureza do que fisgou. Isso vale para todo mundo a princípio. É difícil perceber o que se está fazendo quando se está pescando no inconsciente. Quando se é inexperiente, não se sabe que lá no fundo vive a natureza da morte. Quando descobrimos que é com ela que estamos tratando, nosso primeiro impulso é o de jogá-la de volta. Passamos a ser como os pais que lançam suas filhas rebeldes para fora do caiaque e para o fundo do mar.
Sabemos que os relacionamentos às vezes vacilam quando passam do estágio esperançoso para o estágio de encarar o que realmente está preso no anzol. Isso vale tanto para o relacionamento entre a mãe e o bebê de um ano e meio, quanto para os
pais e o filho adolescente, para as amizades e para os relacionamentos amorosos de
uma vida inteira ou ainda muito recentes. A ligação iniciada com toda a boa vontade oscila e balança, às vezes até cambaleia, quando o estágio de “enamoramento” se encerra. Depois, em vez da encenação de uma fantasia, começa a sério um relacionamento mais desafiador, e toda a nossa experiência e habilidade precisam ser postas em ação.
A Mulher-Esqueleto que jaz no fundo do mar é uma forma inerte da vida instintiva profunda, que conhece de cor a criação da vida, a criação da morte. Se os amantes insistem numa vida de alegria forçada, de um perpétuo desenrolar de prazeres e de outras formas de sensações intensas e entorpecedoras, ou se eles insistem numa tempestade sexual de Donner und Blitz, com trovões e relâmpagos ou num excesso
de delícias sem nenhum tipo de luta, lá se vai a natureza da vida-morte-vida penhasco abaixo, de volta ao fundo do mar.
A recusa a permitir a presença de todos os ciclos da vida-morte-vida no relacionamento amoroso faz com que a natureza da Mulher-Esqueleto seja arrancada do seu habitat psíquico para se afogar. O relacionamento amoroso assume, então, uma expressão forçada de “…não vamos nunca ficar tristes, vamos sempre ter prazer”, expressão a ser mantida a qualquer custo. A alma do relacionamento desaparece de vista e sai a vaguear debaixo d’água, sem sentido e inútil.
A Mulher-Esqueleto é sempre jogada penhasco abaixo quando um dos parceiros, ou mesmo os dois, não consegue suportá-la ou compreendê-la. Ela é atirada de cima do penhasco quando não compreendemos bem seus ciclos de transformação: quando algo precisa morrer e ser substituído.
Se os parceiros não puderem suportar esses processos da vida-morte-vida, não poderão se amar além das aspirações hormonais.
Jogar a natureza da vida-morte-vida pelo penhasco abaixo sempre faz com que a mulher que ama, bem como a força emocional nos homens, se transforme num esqueleto privado de um amor ou de um alimento autêntico. Como a mulher é uma guardiã dos ciclos, os ciclos da vida-morte-vida são o alvo principal da sua preocupação. Já que pouca vida nova pode surgir sem que ocorra um declínio na que havia antes, os amantes que insistirem em tentar manter tudo num apogeu psíquico cintilante passarão seus dias num relacionamento cada vez mais mumificado. O desejo de forçar o amor a prosseguir somente no seu aspecto mais positivo é o que faz com que o amor acabe morrendo, e para sempre.
O desafio do pescador é o de encarar A Morte, seu abraço e seus ciclos de vida e morte. Ao contrário de outras histórias em que uma criatura submarina é capturada e liberada, concedendo, assim, ao pescador um desejo como expressão de gratidão, A Morte não vai se soltar, A Morte não vai satisfazer desejos por nada. Ela vem à tona, queiramos ou não, pois sem A Morte não pode haver um real conhecimento da vida e sem esse conhecimento, não pode haver fidelidade, não pode haver uma devoção ou um amor verdadeiro.
O amor tem seu custo. Ele exige coragem. Ele exige que percorramos a distância, como iremos ver.
Repetidas vezes observo um fenômeno em amantes, independente do sexo. Seria mais ou menos assim: duas pessoas começam uma dança para ver se elas vão querer se amar. De repente, a Mulher-Esqueleto é fisgada por acaso. Algo no relacionamento começa a diminuir e cai em entropia. Com freqüência, o doloroso prazer da excitação sexual se abranda, um passa a perceber o lado frágil e ferido do outro, ou ainda um deixa de ver o outro como “material digno de admiração”, e é aí que a velha careca e de dentes amarelos vem à tona.
Parece tão repulsivo, mas esse é o momento perfeito em que se apresenta uma verdadeira oportunidade de demonstrar coragem e de conhecer o amor. Amar significa ficar com alguém. Significa emergir de um mundo de fantasia para um mundo em que o amor duradouro é possível, cara a cara, ossos a ossos, um amor de devoção.
Amar significa ficar quando cada célula nos manda fugir.
Quando os parceiros são capazes de suportar a natureza da vida-morte-vida, quando eles conseguem compreendê-la como uma continuidade — como uma noite entre dois dias — e como aquela força geradora de um amor que resiste por toda a vida, eles conseguem encarar a Mulher-Esqueleto no relacionamento. Juntos, então, os dois se fortalecem e os dois são chamados a uma compreensão mais profunda dos dois mundos em que vivem, a do mundo concreto e a do mundo do espírito.
Durante meus vinte anos de exercício da profissão, homens e mulheres se afundaram no meu sofá dizendo, com um pavor feliz: “Conheci uma pessoa. Eu não queria. Estava na minha. Nem estava olhando quando, de repente, conheci essa Pessoa com P maiúsculo. E agora o que é que eu vou fazer?” À medida que eles vão fomentando o novo relacionamento, começam a se acovardar. Eles se encolhem e se preocupam. Estarão sentindo ansiedade quanto ao amor dessa pessoa? Não. Eles estão com medo porque começam a vislumbrar uma caveira lisa que surge debaixo das ondas da paixão. Ai! O que vão fazer?
Digo-lhes que essa é uma hora mágica. Isso pouco os tranqüiliza. Digo-lhes que agora iremos ver algo de fantástico. Eles têm pouca fé. Digo-lhes para não soltar a mão, e isso eles mal conseguem fazer. Antes que eu perceba, do ponto de vista da análise, o barquinho do relacionamento está remando cada vez mais rápido. Ele encalha na praia, e antes que se possa dizer qualquer coisa, lá estão eles correndo na maior velocidade. E eu, como analista, corro ao seu lado tentando dizer algo de útil enquanto adivinham quem vem aos trancos logo atrás.
Para a maioria, ao primeiro confronto com a Mulher-Esqueleto, o impulso é o de correr como o vento à maior distância possível. Até mesmo a corrida faz parte do processo. É humano agir assim, mas não por muito tempo, nem para sempre.
Mulheres Que Correm Com Lobos, de Clarissa Pínkola Estés.
Foto: Juliana Coutinho