A dança do corpo e da alma

Através dos seus corpos, as mulheres vivem muito perto da natureza da vida-morte-vida. Quando as mulheres estão em pleno uso de sua mente instintiva, suas idéias e impulsos no sentido de amar, de criar, de acreditar, de desejar, nascem, cumprem seu tempo, fenecem e morrem, para renascer mais uma vez. Seria possível dizer que as mulheres põem esse conhecimento em prática no consciente e no inconsciente a cada ciclo lunar nas suas vidas. Para algumas, essa lua que determina os ciclos está lá no céu. Para outras, ela é a Mulher-Esqueleto que vive nas suas próprias psiques.

A partir da sua própria carne e dos seus próprios ossos, bem como dos ciclos constantes de enchimento e de esvaziamento do vaso vermelho do seu ventre, a mulher compreende em termos físicos, emocionais e espirituais que os apogeus têm  seu declínio e  sua morte, e que o que sobra renasce de um jeito inesperado e por meios inspirados, só para voltar ao nada e mais uma vez retornar em pleno esplendor. Como podemos ver, os ciclos da Mulher-Esqueleto permeiam e perpassam a mulher inteira. Não pode ser diferente.
As vezes, os homens que ainda estão fugindo da natureza da vida-morte-vida têm medo de uma mulher dessas, porque pressentem ser ela uma aliada natural da Mulher-Esqueleto. No entanto, nem sempre foi assim. O símbolo da Mulher-Eesqueleto é um resquício de um tempo em que se sabia muito sobre a morte como transformação espiritual,  em que A Morte era bem-vinda como um parente próximo, como nossa própria irmã, mãe, irmão, pai ou amante. Nas fantasias femininas, a Morte Mulher, a Mãe Morte ou a Morte Donzela sempre foi interpretada como a portadora do destino, a criadora, a virgem ceifadora, a mãe, a que caminha pelo rio e a recriadora: todos esses papéis num ciclo.
As vezes aquele que está fugindo da natureza da vida-morte-vida insiste em pensar que o amor é apenas uma dádiva. No entanto, o amor em sua plenitude é uma série de mortes e de renascimentos. Deixamos uma fase, um aspecto do amor, e entramos em outra. A paixão morre e volta. A dor é espantada para longe e vem à tona mais adiante. Amar significa  abraçar e ao mesmo tempo suportar inúmeros finais e inúmeros recomeços — todos no mesmo relacionamento.
O processo se complica com o fato de que grande parte da nossa cultura excessivamente civilizada tem dificuldade para tolerar o que tiver natureza transformadora. Existem atitudes melhores para nosso envolvimento com a natureza da vida-morte-vida. Em todo o mundo, embora lhe atribuam nomes diferentes, muitos vêem essa natureza como  un baile con La Muerte, uma dança com a morte: a Morte como um dos parceiros, a Vida como o outro.
Bem ao norte da região das dunas nos Grandes Lagos, onde ainda vivem pessoas que falam um dialeto bíblico cheio de  tusvós, há uma história intitulada “Dead Bolt”. Na versão que me foi passada pela sra. Arlen Scheffeler, trata-se  da história de uma mulher que recebe junto à sua lareira um viajante chamado Morte. A velha não sente medo. Ela parece saber que a Morte tanto dá a vida quanto distribui a morte. Ela sabe que a Morte é a causa de todas as lágrimas e de todo o riso.
Ela diz ao viajante que ele é bem-vindo ao seu lar, que ela o amou durante “todas as colheitas, todos os pousios dos campos, os nascimentos dos filhos, as mortes dos filhos”. Ela afirma que o conhece e que ele é seu amigo. “Trouxeste-me muito pranto e muita dança, Morte. Podes dar as instruções. Conheço bem os passos!”

Para fazer amor, se queremos amar, bailamos con La Muerte, dançamos com a Morte. Haverá enchentes, haverá secas; haverá recém-nascidos, natimortos e ainda o renascimento de algo novo. Amar é aprender os passos. Fazer amor é dançar a dança.
A energia, o sentimento, a intimidade, a solidão, o desejo, o tédio, todos aumentam e diminuem em ciclos relativamente comprimidos. Nosso desejo de proximidade e de separação, alterna ciclos de crescimento e de declínio. A natureza da vida-morte-vida não só nos ensina a acompanhar esses ciclos na dança, mas nos mostra que a solução para o mal-estar está sempre no contrário. Portanto, novas atividades são a cura para o tédio; a intimidade é a cura para a solidão; a  solidão é a cura para a sensação de falta de espaço.
Sem o conhecimento dessa dança, a pessoa tem a tendência, durante vários períodos de águas paradas, a traduzir a necessidade de atividade nova e pessoal em gastos excessivos, em exposição a riscos, em escolhas irresponsáveis, na procura de um novo parceiro. Esse é o jeito do tolo ou do pateta. É a solução dos que não sabem.
A princípio, nós todos pensamos que podemos deixar para trás o aspecto da morte da natureza da vida-morte-vida. A verdade é que não conseguimos, pois ele nos acompanha de perto, aos trancos e barrancos, até dentro da nossa casa, até dentro da nossa consciência. Se não for por outro modo, aprendemos acerca dessa natureza mais sombria quando aceitamos o fato de que o mundo não é lindo, de que chances são perdidas, de que oportunidades surgem inesperadamente, de que os ciclos da vida-morte-vida prevalecem, quer queiramos quer não. No entanto, se vivermos como respiramos, inspirando e soltando, não poderemos errar.
Nessa história, há duas transformações, a do caçador e a da Mulher-Esqueleto. Em termos modernos, a transformação do caçador seria mais ou menos como o que se segue. A princípio, ele é o caçador inconsciente. “Oi, sou só eu. Estou pescando e cuidando da minha vida.” Depois, ele passa a ser o caçador assustado, em fuga. “O quê? Você me quer? Bem, acho que está na hora de eu ir andando.” Mais tarde, ele reconsidera, começa a desenredar seus sentimentos e descobre um meio de se relacionar com ela. “Parece que a minha alma é atraída por  você. Quem é você, no
fundo? Qual é a sua estrutura?” Em seguida, ele adormece. “Vou confiar em você. Vou me permitir expor minha inocência.” Com isso, sua lágrima de sentimento profundo é revelada e alimenta a Mulher-Esqueleto. “Esperei muito tempo por você.” Seu coração é emprestado para criá-la por inteiro. “Pronto, tome meu coração e conquiste a vida na minha vida.” E assim o caçador-pescador é recompensado com o amor. Essa é a transformação típica de uma pessoa que aprende a amar.
As transformações da Mulher-Esqueleto assumem uma trajetória ligeiramente diferente. Para começar, como natureza da vida-morte-vida, ela está acostumada a que seus relacionamentos com seres humanos terminem imediatamente depois de ela ser fisgada. Não é de surpreender que ela  cubra com tantas bênçãos aqueles que se dispõem a correr na sua companhia, pois está habituada a ver os seres humanos cortarem a linha do anzol e dispararem para a terra.
No início, ela foi rejeitada e vive no exílio. Depois, é por acaso fisgada por alguém que tem medo dela. Ela começa a voltar à vida a partir de um estado inerte.
Ela come, bebe daquele que a resgatou, transforma-se com a força do coração do homem, com sua coragem de encará-la. Ela se transforma de esqueleto em ser vivo. É amada por ele, e ele, por ela. Ela o revitaliza como é revitalizada por ele. Ela, que é a grande roda da natureza, e ele, o ser humano, passam a conviver em harmonia.
Vemos na história que a força da Morte exige o amor. Ela exige a lágrima — o sentimento— e o coração. Ela precisa que façam amor com ela. A natureza da vida-morte-vida exige dos amantes que eles encarem de imediato esse aspecto, que eles
não regateiem nem desfaleçam para escapar dela, que sua dedicação mútua seja muito mais do que “estar juntos”, que seu amor se baseie na união do conhecimento e
da força para se deparar com essa natureza, para amar essa natureza e para juntos
dançarem com ela.
A Mulher-Esqueleto com o canto cria para si mesma um corpo exuberante. Esse corpo criado pelo canto é prático sob todos os aspectos. Não se trata dos pedaços e partes de carne feminina idolatrados por alguns em algumas culturas, mas, sim, um corpo inteiro de mulher, que pode amamentar, fazer amor, dançar e cantar, dar à luz e sangrar sem morrer.
O canto para criar a carne é  outro tema comum no folclore. Em histórias africanas, papuas, judaicas, hispânicas e do povo inuit, os ossos transformam-se numa pessoa. O náuatle Coatlique produz seres humanos adultos a partir de ossos do Mundo dos mortos. Um xamã do povo  tlingit desnuda, com um canto, a mulher que ama. Nas história de todas as partes do mundo, a mágica resulta do canto. O canto produz o crescimento.
Também em todas as partes do mundo, diversas fadas, ninfas e mulheres gigantes possuem seios tão compridos que podem ser jogados sobre os ombros. Na Escandinávia, entre os celtas e na região circumpolar, há histórias que falam de
mulheres que criam o corpo segundo sua vontade.
Deduzimos da história que a doação do corpo é uma das últimas fases do amor. É assim que deve ser. É bom dominar os primeiros estágios do encontro com a natureza da vida-morte-vida e deixar para depois as experiências práticas do corpo-a-corpo. Advirto as mulheres para que não aceitem um amante que salte de uma fisgada acidental para a doação do corpo. Insistam no cumprimento de todas as fases. Assim, a última fase virá por si só. A ocasião para a união dos corpos chegará na hora certa.
Quando a união começa na fase carnal, o processo de enfrentamento da natureza da vida-morte-vida ainda pode ter lugar mais tarde… mas isso exigirá muita determinação. É um trabalho mais difícil porque o ego do prazer precisa ser afastado à força do seu interesse carnal a fim de que se construam os alicerces. O cãozinho na história de Manawee nos recorda como é difícil lembrar em que caminho estamos quando nossos nervos estão sendo afetados pelo prazer.
Portanto, fazer amor é fundir a respiração e a carne, o espírito e a matéria. Um se encaixa no outro. Nessa história, ocorre o acasalamento do mortal com o imortal, e isso também vale para um relacionamento amoroso que vá durar. Existe um vínculo imortal de alma para alma que mal conseguimos descrever, ou talvez que mal consigamos decidir, mas que vivenciamos em profundidade.

Numa história maravilhosa originada da Índia, um mortal toca um tambor para que as fadas dancem diante da deusa Indra. Em troca desse serviço, o tocador de tambor recebe uma fada em casamento. Há algo de semelhante também no relacionamento
amoroso. Algum tipo de premiação é concedida ao homem que quiser entrar num relacionamento de cooperação com o reino da psique feminina, reino que lhe é misterioso.
No final da história, o pescador está grudado com a natureza da vida-morte-vida, unido a ela. O significado disso é diferente para cada homem. A forma pela qual ele vivencia esse aprofundamento do seu relacionamento com ela também é exclusiva. Só sabemos que, para amar, é preciso que se beije a megera, e ainda mais. É preciso que façamos amor com ela.
A história também nos fala de como entrar num relacionamento  de enriquecedora cooperação com o que tememos. Ela é exatamente aquilo a que precisamos emprestar nosso coração. Quando o homem se funde com a Mulher-Esqueleto, ele fica o mais íntimo possível dela, e isso faz com que ele conquiste a máxima intimidade com  sua parceira. Para descobrir essa eminente conselheira da vida e do amor, basta que paremos de correr, que a desemaranhemos um pouco, que encaremos a ferida e nosso próprio anseio de compaixão, que dediquemos nosso coração inteiro a esse processo.
Portanto, no final, ao se prover de carne, a Mulher-Esqueleto representa na íntegra o processo de criação. No entanto, em vez de começar a vida como bebê, da maneira que nós, ocidentais, aprendemos a pensar na vida e na morte, ela começa a partir dos ossos e vai se enchendo de carne. Ela ensina o homem a criar uma vida nova. Ela lhe mostra que o caminho do coração é o caminho da criação. Ela lhe demonstra que a criação é uma série de nascimentos e mortes. Ela ensina que o excesso de proteção não cria nada, que o egoísmo não cria nada, que se agarrar às coisas e berrar não resulta em nada. Só a soltura, a doação do coração, o grande tambor, o magnífico instrumento da natureza selvagem, é só isso que cria.
É assim que o relacionamento amoroso deveria funcionar, com cada parceiro transformando o outro. A força e poder de cada um são desembaraçados, compartilhados. Ele lhe dá seu tambor do coração. Ela lhe transmite o conhecimento dos ritmos e emoções mais complicados que se possa imaginar. Quem sabe o que os dois irão caçar juntos? Só sabemos que eles se nutrirão até o final dos seus dias.

Mulheres Que Correm Com Lobos, de Clarissa Pínkola Estés.

Foto: Dino Ahmad Ali

Um comentário

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