Existe o fogo que acompanha a alegria, e o fogo que acompanha a destruição. Um é o fogo da transformação; o outro, o fogo apenas da dizimação. No entanto, muitas mulheres renunciam aos seus sapatos vermelhos e concordam em se tornar limpas demais, educadas demais, submissas demais à visão de mundo das outras pessoas. Estamos entregando nossos alegres sapatos vermelhos ao fogo destrutivo quando digerimos valores, propagandas e filosofias por atacado, incluindo-se aí as de natureza psicológica. Os sapatos vermelhos são reduzidos a cinzas quando pintamos, atuamos, escrevemos, agimos e somos de qualquer modo que diminua as nossas vidas, que enfraqueça a nossa visão, que alquebre os ossos do nosso espírito.
É então que a vida da mulher é dominada pela palidez porque ela está com hambre del alma; é uma alma faminta. Tudo o que ela quer é ter de volta sua vida profunda. Tudo o que ela quer é aquele par de sapatos vermelhos feitos à mão. A enorme alegria que eles representam poderia ter sido extinta no fogo da falta de uso ou no da desvalorização do nosso próprio trabalho. Eles também poderiam ter ardido nas chamas do silêncio que impomos a nós mesmas.
Uma quantidade excessiva de mulheres fez um voto terrível anos antes de serem capazes de um melhor discernimento. Ainda jovens, faltaram-lhes o apoio e o estímulo básicos; e assim, cheias de mágoa e resignação, elas pousaram suas canetas, calaram sua voz, desligaram seu canto, enrolaram suas telas e juraram nunca mais voltar a tocar neles. A mulher que esteja em condições semelhantes entrou, sem perceber, no forno junto com a vida da sua própria criação. Sua vida fica reduzida a cinzas.
É possível que a vida de uma mulher definhe no fogo do ódio a si mesma, pois os complexos corroem fundo e, pelo menos por algum tempo, conseguem manter a mulher afastada do trabalho ou da vida que realmente importam para ela. Muitos anos se passam sem que ela ande, se mexa, aprenda, descubra, obtenha, assuma, sem que se transforme.
A imagem que a mulher cria para sua própria vida também pode ser destruída pelas chamas da inveja de outra pessoa ou pela simples atitude destrutiva dessa pessoa para com ela. Não se espera que a família, os conselheiros, professores e amigos sejam destrutivos mesmo quando sentem inveja, mas a verdade é que alguns deles decididamente são destrutivos, tanto de formas sutis quanto de formas não tão sutis. Nenhuma mulher pode permitir que sua vida criativa fique suspensa por um fio enquanto ela presta serviço a um amigo, mestre, pai ou parceiro num relacionamento amoroso, que não lhe seja propício.
Quando a vida da alma de uma pessoa fica reduzida a cinzas, a mulher perde seu tesouro vital e começa a agir com a aridez da morte. No seu inconsciente, o desejo pêlos sapatos vermelhos, por uma alegria imensa, não só continua, mas cresce, transborda, acaba conseguindo se equilibrar nos próprios pés e domina a mulher, faminto e brabo.
Viver no estado de hambre del alma, de alma faminta, é sentir uma fome insaciável. Nessa situação, a mulher arde de fome por qualquer coisa que a faça voltar a se sentir viva. A mulher que foi capturada não sabe o que fazer e aceita alguma coisa, qualquer coisa, que lhe pareça semelhante ao tesouro original, seja para o seu bem ou não. A mulher que foi privada da sua verdadeira vida da alma pode dar a impressão de estar “limpa e penteada”, mas por dentro ela está repleta de dezenas de mãos que imploram e de bocas vazias.
Nesse estado, ela aceita qualquer alimento independente das suas condições e dos seus efeitos porque está tentando compensar perdas anteriores. No entanto, mesmo que essa seja uma situação terrível, o Self selvagem insiste em tentar nos salvar. Ele sussurra, geme, chama, arrasta nossas carcaças descarnadas de um lado para o outro nos nossos sonhos até que nos conscientizemos da nossa condição e tomemos medidas no sentido de resgatar o tesouro.
Podemos entender melhor a mulher que se afunda em excessos — sendo os mais comuns as drogas, o álcool e relacionamentos prejudiciais — e cuja força propulsora é a fome da alma, com a observação do comportamento do animal esfaimado e voraz. Como a alma faminta, o lobo sempre foi descrito como um ser perverso, devorador, que ataca os inocentes e os desprotegidos, que mata por matar, que nunca sabe quando parar. Como se pode ver, o lobo tem uma reputação péssima e imerecida tanto nos contos de fadas quanto na vida real. Na verdade, os lobos são animais sociais dedicados. A matilha como um todo é organizada instintivamente de modo que os lobos saudáveis matem apenas o que for necessário para a sobrevivência. É somente quando algum trauma atinge um lobo isolado ou a matilha como um todo que esse padrão normal se relaxa ou se altera.
Existem duas circunstâncias nas quais o lobo mata desenfreadamente. Nos dois casos, ele não está bem. Ele pode matar indiscriminadamente quando está doente de raiva ou cinomose. Ele pode, também, matar indiscriminadamente após um período excessivo de fome. A idéia de que a fome pode mudar o comportamento dos seres vivos tem grande significado para as mulheres de alma faminta porque, em nove entre dez casos, a mulher com um problema espiritual/psicológico que a faz cair em armadilhas e se machucar seriamente é uma mulher cuja alma está sendo atualmente, ou foi no passado, submetida à fome.
Entre os lobos, a fome ocorre quando há fortes nevascas e é impossível chegar à caça. O cervo e o caribu funcionam como limpa-neves. Os lobos seguem as trilhas que eles abrem na neve alta. No entanto, quando o cervo fica preso por nevascas pesadas, essa limpeza pára, e os lobos também ficam sem ter rastros a seguir. A conseqüência é a fome. Para os lobos, a época mais propícia aos perigos da fome é o inverno. Para a mulher, a fome pode surgir a qualquer hora, vinda de qualquer lugar, até mesmo da sua própria cultura.
Para o lobo, a fome geralmente termina na primavera, quando a neve começa a derreter. Depois de passar fome, a matilha pode se entregar a uma matança desenfreada. Seus integrantes não comem a maior parte da caça morta, nem a escondem. Eles simplesmente a abandonam. Matam muito mais do que jamais conseguiriam comer, muito mais do que jamais precisariam. Um processo semelhante ocorre quando uma mulher foi capturada e submetida à fome. De repente, sentindo-se livre para ir e vir, fazer e ser, ela corre o risco de se entregar a excessos irresponsáveis… e de se sentir no direito de fazê-lo. A menina no conto de fadas também crê ter o direito de acesso aos perigosos sapatos vermelhos a qualquer custo. Há algo na fome que nos priva do raciocínio.
Portanto, quando o tesouro da vida mais profunda da mulher foi reduzido a cinzas, em vez de ter a motivação da expectativa, ela se vê possuída pela voracidade.
Se não se permitia, por exemplo, que a mulher esculpisse, ela de repente pode começar a esculpir dia e noite, perdendo horas de sono, privando de a limento seu corpo inocente, prejudicando sua saúde e sabe-se lá mais o quê. Pode ser que ela não consiga ficar acordada nem mais um segundo. Recorre, então, às drogas… pois quem sabe quanto tempo ainda irá continuar livre?
Hambre del alma também implica a privação dos atributos da alma: a criatividade, a percepção sensorial e outros dons instintivos. Se uma mulher tem de ser bem-educada e só se senta com os joelhos bem juntinhos; se ela foi criada de modo a baixar a cabeça diante da linguagem grosseira; se nunca lhe foi permitido beber nada a não ser leite pasteurizado… quando ela se liberar, cuidado! De repente, pode não haver quantidade de gim que sacie sua sede; ela pode se esparramar como um marinheiro embriagado; e seus palavrões podem fazer soltar a tinta das paredes.
Depois da fome, vem o medo de que um dia desses voltemos a ser capturadas. Por isso, vamos aproveitar enquanto é tempo.
A aniquilação através de excessos, ou seja, os comportamentos exagerados, é a reação da mulher que está faminta por uma vida que tenha significado e faça sentido para ela. Quando uma mulher passou longos períodos sem seus ciclos ou sem suprir suas necessidades criativas, ela começa a se exceder, seja no que for: álcool, drogas, raiva, espiritualidade, opressão generalizada, promiscuidade, gravidezes, estudo, criação, controle, instrução, organização, forma física, comidas pouco saudáveis, para citar apenas algumas áreas em que os excessos são comuns. Quando a mulher age assim, ela está procurando compensar a perda dos ciclos regulares de expressão de si mesma, expressão da alma, da satisfação da alma.
A mulher faminta resiste a muitos períodos de privação. Ela pode planejar escapar e, não obstante, considerar alto demais o preço da fuga, acreditando que ela lhe exigirá muita libido, muita energia. A mulher pode também se sentir despreparada sob outros aspectos, como por exemplo em termos espirituais, econômicos ou da sua própria formação. Infelizmente, a perda do tesouro e a recordação de longas temporadas de privação podem nos levar a racionalizar que os excessos são desejáveis. E é claro que é um imenso alívio e prazer conseguir finalmente apreciar uma sensação… qualquer sensação.
A mulher recém-liberta da fome só quer gozar a vida, para variar. Suas percepções embotadas no que diz respeito aos limites financeiros, espirituais, físicos, racionais e emocionais necessários para a sobrevivência colocam em risco sua existência. Para ela, há em algum lugar um belo e perigoso par de sapatos vermelhos.
Ela os apanhará onde os encontrar. É esse o problema da privação. Se alguma coisa der a impressão de preencher o anseio, a mulher a agarrará, sem fazer perguntas.
Mulheres Que Correm Com Lobos, por Clarissa Pínkola Estés.
Foto: Frau Bolza