Nesse segmento da história, a menina está para ser crismada e é levada ao sapateiro para comprar sapatos novos. O tema da crisma é um acréscimo relativamente moderno à história. Em termos arquetípicos, é provável que “Os sapatinhos vermelhos” seja um fragmento extremamente alterado de uma história ou mito muito mais antigo que tratava do surgimento da menarca e da passagem para uma vida menos protegida pela mãe, já que a jovem teria aprendido na infância com mulheres mais velhas do que ela a ficar alerta para o mundo concreto e a reagir a ele.
Diz-se que nas antigas culturas matriarcais da Índia, do Egito, de partes da Ásia e da Turquia — que parecem ter influenciado o nosso conceito da alma feminina por milhares de quilômetros em todas as direções — a transmissão da henna e de outros pigmentos vermelhos às mocinhas, para que pudessem tingir os pés com eles, era uma característica fundamental dos ritos de passagem. Um dos ritos de passagem mais importantes tratava da primeira menstruação. Esse rito celebrava a travessia da infanda para a profunda capacidade de gerar vida no próprio ventre, de dispor do poder sexual resultante e de todos os poderes femininos periféricos. A cerimônia apresentava o sangue em todos os seus estágios: o sangue uterino da menstruação, o do parto, o do aborto, todos escorrendo na direção dos pés. Como se pode ver, os sapatos vermelhos originais eram plenos de significado.
A referência ao dia do sacramento da crisma é também um acréscimo mais recente. Trata-se de uma festa cristã que, na Europa, acabou por superar os festejos do solstício de inverno da antiga cultura pagã. Durante as festividades pagãs, mais antigas, as mulheres praticavam a purificação ritual do corpo feminino e da alma/espírito feminino numa preparação para uma nova vida, tanto figurativa quanto literal, na primavera que viria. Esses ritos podiam conter o lamento grupal pelas perdas nos partos, incluindo-se a morte de um filho, o aborto natural, o parto de natimortos, o aborto provocado e outros acontecimentos importantes na vida sexual e reprodutiva do ano anterior.
Nesse momento na história, ocorre um dos episódios mais reveladores da repressão psíquica. O voraz desejo da criança pela alma destrói as trancas do seu comportamento reprimido. Na sapataria, ela faz passar os estranhos sapatos vermelhos sem que a velha senhora note. Uma fome devoradora pela vida da alma veio à tona na sua psique, apanhando qualquer coisa que lhe caia nas mãos, pois ela sabe que logo voltará a ser reprimida.
Essa explosiva “ocultação” psicológica ocorre quando a mulher reprime grande parte do self, empurrando-o para locais sombrios na psique. Segundo a psicologia analítica, a repressão de sentimentos, instintos e impulsos tanto negativos quanto positivos, forçando-os para o fundo do inconsciente, faz com que eles ocupem o reino da sombra. Embora o ego e superego continuem tentando censurar os impulsos da sombra, a própria pressão causada por essa repressão se assemelha muito a uma bolha na lateral de um pneu. Com o tempo, à medida que o pneu gira e se aquece, a pressão por trás da bolha aumenta e provoca uma explosão, que libera todo o ar do seu interior.
A sombra age de modo semelhante. É por isso que uma pessoa extremamente sovina pode surpreender a todos contribuindo de repente com milhões de dólares para um orfanato. Ou é por isso que uma pessoa normalmente simpática é capaz de ter um ataque e agir momentaneamente como um rojão enlouquecido. Concluímos que, quando se abre um pouco a porta para o reino da sombra e se permite que vários elementos saiam, aos poucos, para que nos relacionemos com eles, que descubramos uso para eles, que negociemos com eles, podemos reduzir a chance de sermos surpreendidas por ataques e explosões inesperadas dali provenientes.
Embora os valores possam mudar de uma cultura para a outra, colocando, assim, “negativos” e “positivos” diferentes no reino das sombras, impulsos típicos que são considerados negativos e, portanto, relegados às trevas são aqueles que estimulam a pessoa a roubar, a enganar, a assassinar, a agir com excesso de diversas maneiras, e assim por diante nessa mesma linha. Os aspectos negativos da sombra costumam ser estranhamente interessantes e, ainda assim, de natureza entrópica, roubando o equilíbrio e a serenidade na disposição e na vida de indivíduos, relacionamentos e grupos maiores.
A sombra pode, porém, conter aspectos divinos, exuberantes, belos e poderosos da individualidade. Para as mulheres, especialmente, o mundo sombrio quase sempre contém modos refinados de ser que são proibidos na sua cultura ou que nela recebem pouco apoio. No fundo do poço da psique de muitas mulheres está a criadora visionária, a astuta reveladora da verdade, a vidente, a que pode falar bem de si mesma sem se censurar, que pode se encarar sem repulsa, que se esforça para aperfeiçoar seu talento. Os impulsos positivos ocultos nas sombras da nossa cultura na maioria das vezes estão relacionados à permissão para que a mulher crie uma vida própria, feita à mão.
Esses aspectos rejeitados, desvalorizados e “inaceitáveis” da alma e do self não ficam simplesmente ali parados nas trevas, mas conspiram para decidir quando e como farão uma tentativa para alcançar a liberdade. Eles borbulham ali no inconsciente, em fervilhante ebulição, até que um dia, não importa se a tampa que os cobre esteja bem fechada ou não, explodem em todas as direções num caudal descontrolado e com vontade própria.
Nessas circunstâncias, como dizem no interior, é como tentar pôr dez quilos de lama num saco de cinco quilos. O que irrompeu das trevas é difícil de ser controlado depois da explosão. Embora tivesse sido muito melhor ter descoberto um meio de vivenciar a alegria proporcionada pelo espírito criativo de modo pleno e consciente, do que tê-la enterrado, às vezes a mulher fica contra a parede, e é esse o resultado.
A vida sombria ocorre quando escritoras, pintoras, bailarinas, mães, cientistas, místicas, estudantes ou artífices param de escrever, de pintar, de dançar, de cuidar dos filhos, de pesquisar, observar, aprender, praticar. Elas podem parar porque aquilo a que dedicaram tanto tempo não saiu como esperavam, não obteve o reconhecimento merecido ou por inúmeras outras razões. Quando quem cria pára pelo motivo que seja, a energia que chega naturalmente a ela é desviada para o mundo oculto, a partir do qual ela vem à tona quando e onde consegue. Como a mulher percebe que não pode se dedicar abertamente àquilo que deseja, ela começa a levar uma estranha vida dupla, simulando um comportamento à luz do dia, agindo de outro modo quando tem a oportunidade.
Quando a mulher começa a arrumar a sua vida para que caiba inteira num pequeno embrulho bem-feito, tudo o que consegue é forçar toda a sua energia vital para o lado da sombra. “É, estou bem”, diz essa mulher. Olhamos para ela do outro lado do quarto ou no espelho. Sabemos que não está bem. Um dia, de repente, alguém nos diz que ela se juntou com um tocador de flautim e fugiu para Tippicanoe para tomar conta de um cassino. Ficamos nos perguntando o que aconteceu porque sabemos que ela detesta flautins e sempre quis ir morar nas ilhas gregas, não em Tippicanoe, e nunca chegou a mencionar uma palavra sequer a respeito de cassinos.
À semelhança de Hedda Gabler na peça de Henrik Ibisen, a mulher selvagem pode fingir que leva uma “vida normal” enquanto range os dentes, mas há sempre um preço ser pago. Hedda esconde uma vida perigosa e apaixonada, brincando com um ex-amante e com a Morte. Por fora, ela parece se contentar em usar chapéus e ouvir seu marido insípido reclamar da monotonia da vida. A mulher pode ser educada até mesmo cínica por fora, enquanto sofre de uma hemorragia interna.
Ou ainda, como Janis Joplin, a mulher pode tentar se adequar até não conseguir agüentar mais; e então sua natureza criativa, corroída e revoltada por ter sido forçada a mergulhar nas sombras, entra em violenta erupção, rebelando-se contra os dogmas da “educação” com atitudes irresponsáveis que desdenham seu próprio talento e sua própria vida.
Pode-se dar o nome que se quiser, mas ter uma vida secreta porque a vida real não tem espaço suficiente para vicejar é prejudicial à vitalidade da mulher. Mulheres famintas e em cativeiro escondem todo o tipo de coisa: músicas e livros proibidos, amizades, sensações sexuais, sentimentos religiosos. Elas escondem pensamentos furtivos, sonhos de revolução. Elas roubam tempo dos seus parceiros e das suas famílias. Escondem dentro de casa um tesouro. Tiram furtivamente o tempo para escrever, para pensar, para a alma. Elas escondem um espírito no quarto de dormir; um poema antes do trabalho; um carinho ou um abraço quando ninguém está olhando.
Para escapar desse caminho polarizado, a mulher tem de abandonar a simulação. Esconder uma vida interior falsa nunca funciona. Ela sempre explode pela lateral do pneu, quando menos esperamos. E aí, é a desgraça para todos. E melhor que despertemos, que nos levantemos, por mais caseira que seja nossa plataforma, e vivamos com a maior intensidade possível, da melhor maneira possível, deixando de lado a ocultação de falsos substitutos. Esperemos pelo que seja realmente significativo e saudável para nós.
Na história, a menina consegue fazer passar os sapatos pela velha senhora de pouca visão. Nesse ponto afirma-se que o próprio sistema de valores rígido e perfeccionista não possui a capacidade de ver bem, de estar alerta para o que acontece ao seu redor. É típico da psique ferida, assim como da cultura nas mesmas condições, não perceber a aflição pessoal do self. E assim a jovem faz mais uma escolha infeliz em meio a uma série de outras.
Partamos do pressuposto de que seu primeiro passo para o cativeiro, a entrada na carruagem dourada, tenha sido fruto da ignorância. Digamos que o abandono da sua própria criação tenha sido irrefletido, mas característico de quem não tem experiência de vida. Agora, porém, ela quer aqueles sapatos na vitrina do sapateiro e, paradoxalmente, esse impulso em busca de uma nova vida é certo e apropriado, mas a verdade é que ela passou muito tempo na casa da velha senhora e, por isso, seus instintos não dão o alarme quando ela escolhe esse perigo mortal. Na realidade, o sapateiro conspira com a menina. Ele pisca e sorri com a sua triste opção. Juntos eles fazem passar os sapatos, sem que a velha perceba.
As mulheres iludem-se dessa forma. Elas jogaram fora o tesouro, qualquer que ele pudesse ter sido, mas ficam escondendo coisinhas ínfimas sempre que podem.
Será que elas escrevem? Escrevem, mas em segredo. E, assim, não têm apoio, nem feedback. A estudante universitária está procurando se superar? Está, mas sozinha, de tal modo que não pode obter ajuda ou orientação. E o que dizer da mulher ambiciosa que finge não o ser, mas que tem uma dedicação sincera a realizações para si mesma, para sua gente, seu mundo? Ela tem sonhos vigorosos, mas se limita a continuar lutando em silêncio. É fatal não ter uma confidente, não ter um guia, não ter nem mesmo uma torcida ínfima.
É difícil ocultar fragmentos de vida desse jeito, mas as mulheres o fazem todos os dias. Quando a mulher se sente obrigada a viver às ocultas, ela está pondo para funcionar um modo de subsistência mínima. Ela oculta a vida para que “eles” não ouçam, quem quer que “eles” sejam na sua vida. Superficialmente, ela aparenta desinteresse e tranqüilidade mas, sempre que surge uma réstia de luz, sua alma esfaimada dá um salto, persegue a forma de vida mais próxima, alegra-se, dá coices, avança loucamente, dança como uma boba, fica exausta e depois tenta se esgueirar de volta à cela sombria antes que alguém perceba sua ausência.
As mulheres infelizes no casamento agem assim. As mulheres forçadas a se sentirem inferiores agem assim. As mulheres cheias de vergonha, as que temem ser punidas, expostas ao ridículo ou à humilhação agem assim. As mulheres com instintos feridos agem assim. Esconder o que se faz só é bom para a mulher no cativeiro se ela esconder o que for certo, só se o que ela esconder for exatamente o que a levará à libertação. No fundo, o ato de esconder fragmentos de vida que sejam corajosos, benéficos e que dêem satisfação faz com que a alma fique ainda mais determinada a erradicar a mentira para ter a liberdade de viver a vida abertamente como bem lhe aprouver.
Vejamos. Há algo na alma selvagem que não nos permite sobreviver para sempre com migalhas. Porque na realidade é impossível para a mulher que luta pela conscientização respirar um pouquinho de ar puro e se contentar com isso só.
Lembre-se de quando você era criança e descobriu que era impossível cometer suicídio prendendo a respiração? Embora você procure continuar só com um pouquinho de ar ou sem ar nenhum, os seus pulmões parecem querer gritar, e alguma força impetuosa e imperativa faz com que você acabe inspirando o máximo de ar possível. Você sorve o ar, você o engole, até voltar a respirar normalmente.
Felizmente existe um mecanismo semelhante na alma/psique. Ele nos domina e nos força a respirar fundo o ar puro. Na realidade, sabemos que não podemos subsistir de verdade se sorvermos a vida em goles mínimos. A força selvagem na alma da mulher exige que ela tenha acesso a tudo. E assim podemos ficar em estado de alerta e assimilar tudo o que for certo para nós.
Na história, o sapateiro é um prenúncio do velho soldado, que mais tarde transmite vida aos sapatos que dançam até enlouquecer quem os calça. Há muitos pontos coincidentes entre esse personagem e o que sabemos da simbologia antiga para que o consideremos um mero espectador. O predador natural no interior da psique (e também aquele pertencente à cultura) é um mutante, uma força capaz de se disfarçar, da mesma forma que as armadilhas, arapucas e iscas envenenadas são disfarçadas para seduzir os desavisados. Devemos levar em consideração que ele transforma em brincadeira o ato de enganar a velha senhora.
Não, é provável que ele seja cúmplice do soldado, que é obviamente uma descrição do diabo disfarçado. Nos velhos tempos, o diabo, o soldado, o sapateiro, o corcunda e outros eram imagens usadas para retratar as forças negativas tanto na natureza da terra quanto na natureza humana.
Embora pudéssemos sentir um orgulho justificado da alma com coragem suficiente para tentar apanhar secretamente alguma coisa, qualquer coisa, sob circunstâncias de tamanha carência, a verdade é que essa atitude por si só não pode ser o único aspecto da questão. Uma psicologia abrangente deve incluir não só o corpo, a mente e o espírito, mas também, e de modo idêntico, a cultura e o ambiente.
A partir dessa perspectiva, é preciso que perguntemos a cada estágio como acabou acontecendo que qualquer mulher específica tenha a sensação de precisar ser servil, retrair-se, humilhar-se e implorar por uma vida que, para começo de conversa, já lhe pertence. Um exame das pressões criadas em cada camada do mundo objetivo e do subjetivo irá evitar que a mulher imagine ser uma opção construtiva apanhar em segredo os sapatinhos do diabo.
Mulheres Que Correm Com Lobos, por Clarissa Pínkola Estés.
Foto: Zenoline