Armadilha nº 7: A simulação, a tentativa de ser boa, a trivialização do anormal

Segundo a história, a menina é punida por usar os sapatos vermelhos para ir à igreja. Agora, embora ela fique olhando para os sapatos no alto da prateleira, ela não os toca. Até então ela tentou sem sua vida profunda, o que não funcionou. Em seguida, ela tentou ocultar uma vida dupla, o que também não funcionou. Agora, num último recurso, ela “tenta ser boazinha”.

O problema com a decisão de “ser boazinha” está em que essa atitude não resolve a questão sombria subjacente, e mais uma vez ela se erguerá como um tsunami, como uma onda gigantesca, que desce veloz, destruindo tudo o que estiver à frente. Ao “ser boazinha”, a mulher fecha os olhos a tudo que for empedernido, deformado ou maléfico à sua volta e simplesmente tenta “conviver” com esses aspectos. Seus esforços no sentido de aceitar esse estado anormal prejudicam ainda mais seus instintos selvagens para reagir, mostrar, mudar, combater o que não está certo, o que não é justo.
Anne Sexton escreveu sobre o conto de fadas dos sapatinhos vermelhos um poema a que deu o mesmo título:

I stand in the ring
in the dead city
and tie on the red shoes…
They are not mine.
They are my mother’s.
Her mother’s before.   
Handed down like an heirloom
but hidden like shameful letters.   
The house and the street where they belong  
are hidden and all the women, too,   
are hidden…
*

* Estou parada no ringue / na cidade morta / e calço os sapatos vermelhos… / Eles não são meus. / São da minha mãe. / Da mãe dela antes. / Passados de mãe para filha como bens da família / mas escondidos como cartas vergonhosas. / A casa e a rua às quais pertencem / estão ocultas e todas as mulheres, também, / estão ocultas.

Tentar ser boa, disciplinada e submissa diante do perigo interno ou externo, ou a fim de esconder uma situação crítica psíquica ou no mundo objetivo, elimina a alma da mulher. É uma atitude que a isola do que sabe; que a isola da sua capacidade de agir. Como a criança na história, que não expressa em voz alta suas objeções, que tenta esconder sua privação, que tenta dar a impressão de que nada está dentro dela, as mulheres modernas passam pela mesma perturbação, a trivialização do que é anormal. Esse distúrbio está disseminado em todas as culturas. A trivialização do anormal faz com que o espírito, que em circunstâncias normais saltaria para corrigir a situação, afunde no tédio, na complacência e acabe, como a velha senhora, na cegueira.
Existe um importante estudo que esclarece a perda do instinto de autodefesa nas mulheres. No início da década de 1960, alguns cientistas realizaram experiências com animais para tentar determinar algo a respeito do “instinto de fuga” nos seres humanos. Numa das experiências, eles fizeram uma instalação elétrica na metade direita de uma grande jaula, de modo que um cão preso nela recebesse um choque cada vez que pisasse no lado direito. O cão aprendeu rapidamente a permanecer no lado esquerdo da jaula.
Em seguida, o lado esquerdo da jaula recebeu o mesmo tipo de instalação, que foi desligada no lado direito. O cão logo se reorientou, aprendendo a ficar no lado direito da jaula. Então, todo o piso da gaiola foi preparado para dar choques aleatórios, de tal modo que, onde quer que o cão estivesse parado ou deitado, ele acabaria levando um choque. Ele a princípio aparentou estar confuso e depois entrou em pânico. Finalmente, o cão desistiu e se deitou, aceitando os choques à medida que surgissem, sem tentar fugir deles ou descobrir de onde viriam.
No entanto, a experiência não estava encerrada. No próximo passo, a jaula foi aberta. Os cientistas esperavam que o cão saísse dali correndo, mas ele não fugiu. Muito embora pudesse abandonar a jaula quando bem entendesse, ele ficou ali deitado  recebendo os choques aleatórios. A partir dessa experiência, os cientistas levantaram a hipótese de que, quando um animal é exposto à violência, ele apresentará a tendência a se adaptar a essa perturbação, de tal forma que, quando a violência pára ou ele  tem acesso à liberdade, o instinto saudável de fugir é extremamente reduzido, e em vez de escapar o animal fica paralisado.
Em termos da natureza selvagem das mulheres, é essa trivialização da violência, assim como o que os cientistas subseqüentemente denominaram “aprendizado da impotência”, que não só influencia as mulheres a ficar com parceiros alcoólatras, patrões exploradores e grupos que se aproveitam delas e as importunam, mas também faz com que elas se sintam incapazes de se erguer para apoiar aquilo em que acreditam profundamente: sua arte, seu amor, seu estilo de vida, sua preferência política.
A trivialização do que é anormal, mesmo quando existem claros indícios de que essa atitude seja prejudicial a nós mesmas, aplica-se a todos os maus-tratos infligidos às naturezas instintiva, espiritual, criativa, emocional e física. As mulheres enfrentam essa questão sempre que são desorientadas de modo a fazer qualquer coisa que não seja a defesa da sua vida profunda de projeções invasivas, culturais, psíquicas ou de outra natureza.
Em termos psíquicos, nós nos acostumamos aos golpes dirigidos às nossas naturezas selvagens. Nós nos adaptamos à violência perpetrada contra a natureza selvagem e sábia da Psique. Tentamos ser boazinhas enquanto trivializamos o anormal. Perdemos, conseqüentemente, nosso poder de fuga. Perdemos nosso poder de lutar pelos elementos da alma e da vida que mais valorizamos. Quando estamos obcecadas pelos sapatinhos vermelhos, todo tipo de fato importante do ponto de vista cultural, pessoal ou ambiental é deixado de lado.
Há uma tal perda de significado quando renunciamos à vida feita à mão que é permitida toda sorte de danos à psique, à natureza, à cultura, à família e assim por diante. Os danos à natureza são concomitantes com o desnorteamento da psique dos seres humanos. A natureza e a psique não são separadas e não podem ser assim consideradas. Quando um grupo fala nos erros da vida selvagem e um outro grupo alega que a vida selvagem foi, sim, vítima, há algo de radicalmente errado nisso tudo.
Na psique instintiva, a Mulher Selvagem contempla do alto a floresta e vê nela um lar para si mesma e para todos os seres humanos. Outros podem, porém, olhar a mesma floresta e imaginá-la sem nenhuma árvore, enquanto seus bolsos estão abarrotados de dinheiro. Essas circunstâncias representam graves fendas na capacidade de viver e deixar viver para que todos possam viver.
Quando eu era menina, na década de 1950, nos primeiros tempos das tragédias industriais destruidoras da Terra, uma barcaça de  petróleo afundou na bacia de Chicago do lago Michigan. Depois de um dia na praia, as mães esfregavam seus filhinhos com a força que geralmente reservavam para os pisos de madeira, porque as crianças estavam imundas com manchas de óleo.
O desastre fez vazar uma substância pegajosa que se espalhou numa fina camada, como enormes ilhas flutuantes, tão extensas e largas quanto um quarteirão de cidade. Quando essas “ilhas” colidiam com o cais, elas se partiam em gotículas que afundavam na areia e chegavam à praia por baixo das ondas. Durante anos a fio, os banhistas não podiam nadar sem saírem emporcalhados. Crianças que construíssem  castelos na areia de repente escavavam sem querer um punhado de óleo viscoso. Os namorados não podiam mais rolar na areia. Os cães,  as aves, a vida aquática e os seres humanos, todos sofreram. Lembro-me de que minha impressão era a de que a minha catedral havia sido bombardeada.
O dano ao instinto, a trivialização do anormal, foi o que permitiu que aquelas mães limpassem as manchas do  derramamento de petróleo, e mais tarde, de outros pecados cometidos por fábricas, refinarias e siderúrgicas, da pele dos seus filhinhos, da sua roupa, de dentro do corpo dos seus amados da melhor maneira possível e, embora confusas e preocupadas, elas conseguiram efetivamente podar sua raiva justificada. Nem todas, mas a maioria delas já estava acostumada a não ser capaz de interferir em acontecimentos chocantes. Havia punições assustadoras para a quebra do silêncio, para a fuga da jaula, para quem identificasse injustiça, para quem exigisse mudanças.
Podemos concluir, a partir de acontecimentos semelhantes ocorridos durante nossa vida, que, quando as mulheres não falam, quando é insuficiente o número de pessoas a falar, a voz da Mulher Selvagem se cala e, com isso, o mundo também se cala de tudo que é natural e selvagem. Acabam também se calando os lobos, ursos e aves de rapina. Os cantos, danças e criações. O amar, consertar e manter. O ar, a água e as vozes da consciência.
No entanto, naquela época, muito  embora as mulheres estivessem todas contaminadas pelo anseio de uma liberdade ilimitada, elas continuavam a passar detergente na louça, a usar produtos cáusticos na limpeza, permanecendo, nas palavras de Sylvia Plath, “atadas às máquinas de lavar roupa Bendix”. Nelas, as mulheres lavavam e enxaguavam suas roupas em água quente demais para o contato com a pele e sonhavam com um mundo diferente. Quando os instintos estão feridos, os seres humanos trivializam uma agressão após a outra, atos de injustiça e destruição que afeiam a elas mesmas, à sua prole, aos seres amados, à sua terra e até mesmo aos seus deuses.
Com a recuperação do instinto ferido, rejeita-se essa trivialização do que é revoltante e violento. À medida que o instinto se restaura, a Mulher Selvagem retorna. Em vez de entrar dançando na floresta usando os sapatos vermelhos até que toda a sua vida passe a ficar torturada e desprovida de significado, podemos voltar à vida feita à mão, à vida plenamente atenta, podemos refazer os nossos próprios sapatos, caminhar o nosso caminho, falar a nossa própria fala.
Embora seja verdade que há muito a se aprender com a dissolução das nossas projeções (você é perverso, você me magoa) e com o exame de como somos perversas com nosso próprio self, como magoamos  a nós mesmas, definitivamente esse não deveria ser o final da investigação.
A armadilha escondida dentro da armadilha consiste em pensar que tudo está resolvido com a dissolução da projeção e com a descoberta da conscientização em nós mesmas. Isso às vezes é verdade, e outras vezes não. Em vez de aplicar esse paradigma de exclusão  — ou há algo de errado lá fora, ou algo de errado comigo — é mais útil aplicar um modelo de acréscimo. Essa é a questão interna, e essa é a questão externa. Esse paradigma permite um exame completo e é muito mais saudável em todos os sentidos. Esse paradigma dá apoio às mulheres para que questionem o  status quo com confiança e para que não olhem apenas para si mesmas mas também para o mundo que as está pressionando por acaso, inconscientemente de propósito. O paradigma do acréscimo não se destina a ser usado como um modelo para atribuir culpa a si mesma ou a outros, mas é, sim, um meio de avaliar e julgar a responsabilidade, tanto interna quanto externa, e o que precisa ser alterado, procurado, esboçado. Ele impede a fragmentação da mulher que procura restaurar tudo que está ao seu alcance, sem negligenciar suas necessidades e sem se isolar do mundo.
Não se sabe como muitas mulheres conseguem se manter nesse estado, mas elas estão vivendo uma vida pela metade, um quarto de vida ou uma fração ainda mais ínfima. Elas conseguem, mas podem ficar amarguradas até o final dos seus dias.
Elas podem se sentir sem esperanças e muitas vezes, como um bebê que chorou e chorou sem que nenhuma ajuda humana se oferecesse, elas podem adotar um silêncio mortal, desesperançado. Seguem-se o cansaço e a resignação. A jaula está trancada.

Mulheres Que Correm Com Lobos, por Clarissa Pínkola Estés.

Foto: Wallig

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