A perda do sentido da alma como iniciação

A foca é um dos mais belos de todos os símbolos da alma selvagem. À semelhança da natureza instintiva das mulheres, as focas são criaturas singulares que evoluíram e se adaptaram através dos séculos. Como a mulher-foca, as focas verdadeiras só vêm à terra firme para procriar e amamentar. A mãe foca é extremamente devotada ao seu filhote por cerca de dois meses, dando-lhe amor e proteção e alimentando-o exclusivamente com as reservas do seu próprio corpo.

Durante esse período, o filhote de quinze quilos tem seu peso quadruplicado. Depois, a mãe nada para mar aberto e o filhote já crescido e capaz começa uma vida independente.
Entre grupos étnicos por todo o mundo, incluindo-se muitos da região circumpolar e  da África Ocidental, diz-se que os seres humanos não estão realmente animados enquanto a alma não der à luz o espírito, cuidando dele e o amamentando, enchendo-o de força. Acredita-se que, com o tempo, a alma se retire para um lar mais distante enquanto o espírito dá início a uma vida independente no mundo.
O símbolo da foca para a alma é ainda mais irresistível porque há nas focas uma “docilidade”, uma facilidade de acesso bem familiar aos que vivem na proximidade delas. As focas têm uma certa qualidade  canina: são afetuosas por natureza. Irradia delas uma espécie de pureza. No entanto, elas também podem ser muito rápidas para reagir, recuar ou retaliar quando ameaçadas. A alma também é assim. Ela paira nas cercanias. Ela alimenta o espírito. Ela não foge quando percebe algo de novo, de incomum ou de difícil.
Pode ocorrer, porém, especialmente quando a foca não está acostumada a seres humanos e fica ali deitada num daqueles estados de beatitude que parecem acometer as focas de vez em quando, que ela não preveja as atitudes do ser humano. Como a mulher-foca da história, e como a alma de mulheres jovens e/ou inexperientes, ela não percebe as intenções dos outros e o perigo em potencial. E é sempre aí que a pele da foca é roubada.
Ao trabalhar com histórias de  “cativeiro” e de “roubos de tesouros” bem como com a minha experiência de análise de muitos homens e mulheres, cheguei à conclusão de que ocorre no processo de individuação de praticamente todo mundo pelo menos um caso de roubo significativo. Algumas pessoas o caracterizam como o roubo da sua “grande oportunidade” na vida. Os apaixonados o definem como o roubo da alma, uma apropriação do espírito da pessoa, um enfraquecimento do sentido de identidade. Outros descrevem o fato como uma distração, uma ruptura, uma interferência ou interrupção de algo que lhes era vital: sua arte, seu amor, seu sonho, sua esperança, sua crença na bondade, seu desenvolvimento, sua honra, seus esforços.
A maior parte do tempo, esse roubo crucial se abate sobre a pessoa vindo de onde ela não espera. Ele cai sobre as mulheres pelos mesmos motivos que ocorrem nessa história do povo  inuit: em virtude da ingenuidade, da percepção falha quanto às motivações dos outros, da inexperiência em projetar o que poderia acontecer no futuro, da falta de atenção a todas as pistas do ambiente e em virtude de o destino estar sempre entretecendo lições em sua trama.
As pessoas que se permitem ser roubadas não são más. Tampouco erradas. Não são tolas. No entanto, elas são sob um certo aspecto inexperientes ou estão imersas numa espécie de cochilo psíquico. Seria um erro atribuir esses estados apenas à juventude. Eles podem ocorrer em qualquer um, independente da idade, da filiação étnica, do grau de instrução ou mesmo das boas intenções. Está claro que  o fato de ser roubado evolui definitivamente para uma misteriosa oportunidade de iniciação arquetípica  para aqueles que se vêem enredados na situação… o que se aplica a quase todo mundo.
O processo de resgate do tesouro e de descoberta de um meio de reabastecer o self faz surgir quatro constructos vitais na psique. Quando se enfrenta esse dilema diretamente e se empreende a descida até o  Río Abajo Río, ele fortalece extremamente nossa determinação de lutar pelo resgate consciente. Ele esclarece, com o passar do tempo, o que é mais importante para nós. Ele nos preenche com a necessidade de ter um plano para nos libertarmos, em termos psíquicos ou em outros termos, e de pôr em cena nosso conhecimento recém-adquirido. Finalmente, e com a máxima importância, ele desenvolve nossa natureza medial, aquela parte selvagem e sagaz da psique que também pode permear o mundo da alma e o mundo dos humanos.
A história da “Pele de foca, pele da alma” é de extrema riqueza, pois fornece instruções claras e precisas para os passos exatos que devemos dar a fim de desenvolver e descobrir nosso próprio modo de cumprir essa tarefa arquetípica. Uma das questões mais cruciais e de maior potencial destrutivo enfrentadas pelas mulheres consiste no fato de elas começarem vários processos de iniciação psicológica sem iniciadores que tenham completado o processo. Elas não conhecem pessoas maduras que saibam como prosseguir. Quando os próprios iniciadores são pessoas cuja iniciação está incompleta, eles omitem aspectos importantes do processo sem perceber, e às vezes causam grandes males ao iniciando por trabalharem com uma idéia fragmentada da iniciação, uma idéia que freqüentemente está contaminada de alguma forma.
Na outra extremidade do espectro, está a mulher que passou pela experiência do roubo e que está lutando por ter maior conhecimento e domínio da situação, mas que se desnorteou e não sabe que existem outros aspectos a serem praticados para completar o aprendizado, voltando, portanto, ao primeiro estágio, o de ser submetida ao roubo, repetidas vezes. Não se sabe por meio de que circunstâncias ela ficou emaranhada nas rédeas. Basicamente, está lhe faltando orientação. Em vez de descobrir as necessidades de uma alma saudável e selvagem, ela se torna vítima de uma iniciação incompleta.
Como os canais de iniciação matrilineares  — mulheres mais velhas que ensinam às mais jovens certos fatos e procedimentos psíquicos do feminino selvagem — foram fragmentados e interrompidos para tantas mulheres e durante tantos anos, é uma bênção poder dispor da arqueologia dos contos de fadas para ter esse aprendizado. Podemos imaginar de novo tudo o que precisamos saber a partir desses modelos profundos, ou podemos comparar nossas próprias idéias a respeito dos processos psicológicos essenciais das mulheres com aquelas encontradas nas histórias. Nesse sentido, os contos de fadas e os mitos são os nossos iniciadores. Eles são os sábios que ensinam aos que vieram depois deles.
Portanto, é para as mulheres semi-iniciadas ou iniciadas de modo incompleto
que a dinâmica apresentada em “Pele da foca, pele da alma” é a mais ilustrativa. Quando se aprende todos os passos que devem ser dados para completar a volta cíclica ao lar, mesmo uma iniciação atamancada pode ser destrinchada, refeita e concluída corretamente. Vejamos como a história nos ensina a proceder.

Mulheres Que Correm Com Lobos, por Clarissa Pínkola Estés.

Foto: Zakwitnij

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