Essa versão de La Llorona pertence à categoria que as cantadoras y cuentistas chamam de temblón, histórias de arrepiar. Elas tem o propósito de divertir, mas têm também a intenção de fazer com que os ouvintes sintam um arrepio da conscientização que leva a uma atitude pensativa, à contemplação e à ação.
Independente das imagens da história que se modificam com o passar do tempo, o tema permanece o mesmo: a destruição do feminino fecundo. Quer a contaminação da beleza selvagem ocorra no mundo interior, quer no mundo exterior, ela é algo doloroso de se presenciar. Na cultura moderna, às vezes consideramos que uma seja muito mais devastadora do que a outra, mas as duas são de importância crítica e equivalente.
Embora eu às vezes conte essa história de duas versões em outros contextos,quando é compreendida como uma imagem da deterioração do fluxo criador, ela faz com que as mulheres se arrepiem por bem saber do que se trata. Se considerarmos essa história como a condição da psique de uma única mulher, poderemos ter uma boa compreensão do enfraquecimento e definhamento do processo criativo da mulher. Como outras histórias com finais trágicos, essa tem a função de ensinar à mulher o que não fazer e como voltar atrás, no caso de escolhas infelizes, para reduzir o impacto negativo. Em geral, ao assumir uma postura psicológica oposta àquela adotada pela protagonista da história, podemos aprender a viajar com a onda em vez de nos afogarmos nela.
Esse conto emprega as imagens da bela mulher e do puro rio da vida para descrever o processo criador da mulher num estado normal. Aqui, porém, quando ele interage com um espírito destrutivo, tanto a mulher quanto o rio decaem. É então que a mulher cuja vida criativa está definhando vivencia, como La Llorona, uma sensação de envenenamento, de deformação, um impulso para acabar com tudo. Em seguida, ela é levada a uma procura aparentemente interminável do seu potencial criativo original, em meio aos destroços.
Para a correção do seu ambiente psíquico, o rio precisa voltar a ficar limpo.
Nessa história, não estamos preocupadas com a qualidade das produtos da nossa criação, mas com a determinação e os cuidados para com nossa vida criativa. Sempre por trás do ato de escrever, de pintar, de pensar, de curar, de fazer, de cozinhar, de falar, de sorrir, de criar, está o rio, o Río Abajo Río. O rio sob o rio alimenta tudo o que criamos.
Na simbologia, os grandes volumes de água representam o lugar em que se crê que a própria vida teve origem. Nas regiões hispânicas do sudoeste dos Estados Unidos, o rio simboliza a capacidade de viver, de viver realmente. Ele é considerado a mãe, La Madre Grande, a Grande Mulher, cujas águas não só correm nas valas e leitos de rios mas que se derramam de dentro do corpo das próprias mulheres quando seus filhos nascem. O rio é visto como a Gran Dama que passeia pela terra com uma saia rodada e esvoaçante, azul ou prateada e às vezes dourada, que se deita com o solo para prepará-lo para o plantio. ,
Algumas das minhas velhas amigas do sul do Texas dizem que El Río Grande não poderia jamais ser um rio-homem, mas um rio-mulher. Elas riem e dizem, como um rio poderia ser outra coisa a não ser La Dulce Acequia, a doce fenda, entre as coxas da terra? No norte do Novo México, o rio na tempestade, no vendaval, nas inundações repentinas, é visto como aquela que está excitada, aquela que no cio corre para tocar tudo o que puder para fazer com que cresça.
Vemos, então, que o rio simboliza aqui uma forma de generosidade feminina que desperta, excita e cria paixão. Os olhos das mulheres cintilam quando elas criam; suas palavras saem melodiosas; seu rosto fica ruborizado; seu próprio cabelo parece brilhar mais. Elas ficam excitadas com a idéia, interessadas pelas possibilidades, apaixonadas pelo próprio pensamento, e a essa altura, como o grande rio, espera-se que elas se derramem continuamente no seu próprio caminho criativo. É desse jeito que as mulheres se sentem realizadas. E são essas as condições do rio junto ao qual La Llorona vivia antes que a destruição ocorresse.
No entanto, como na história, pode acontecer que a vida criativa da mulher seja dominada por algo que deseje fabricar apenas produtos do Ego, que não têm nenhum valor psicológico duradouro. Às vezes existem pressões originadas na sua cultura que lhe dizem que suas idéias são inúteis, que ninguém vai se interessar por elas, que é vão o esforço de continuar. Isso é poluição. Isso equivale a derramar chumbo no rio. É isso o que envenena a psique.
A satisfação do Ego é permissível e importante por si só. O problema reside no fato de que o derramamento de complexos negativos ataca tudo o que significar novidade, tudo o que for novo, que tenha potencial, que tenha acabado de nascer, tudo o que esteja no estado de crisálida, de lacuna, bem como o que estiver já crescido, tudo o que for velho e venerado. Quando há um excesso de fabricação sem alma, os resíduos tóxicos escorrem para o rio límpido, eliminando tanto o impulso criador quanto a energia.
Mulheres Que Correm Com Lobos, por Clarissa Pínkola Estés.
Foto: Chesbayprogram