O rio em chamas

Já na década de 1970, o rio Cuyahoga em Cleveland ficou tão poluído que começou a pegar fogo. A corrente criativa poluída pode de repente irromper num fogo tóxico que queima não somente o combustível do lixo do rio, mas incinera também todas as formas de vida. Um excesso de complexos psíquicos em atividade ao mesmo tempo pode causar um dano imenso ao rio. Complexos psicológicos negativos se erguem e questionam seu valor, sua intenção, sua sinceridade e seu talento. Eles também lhe enviam mensagens no sentido de afirmar inequivocamente que você deve trabalhar para “ganhar a vida”, fazendo coisas que a deixam exausta, que não lhe permitem nenhum tempo para criar, que destroem sua vontade de imaginar.

Alguns dos castigos e das sabotagens preferidos dos complexos malévolos perpetrados contra a criatividade das mulheres giram em torno da promessa feita ao self da alma de que terá “tempo para criar” em algum ponto no futuro remoto. Ou da promessa de que, quando tivermos alguns dias livres, a agitação afinal começará. Isso é tolice. O complexo não tem nenhuma intenção semelhante. É apenas um meio de abafar o impulso criativo.
Pode acontecer que as vozes sussurrem, “Só se você terminar o doutorado, sua obra será decente. Só se você for elogiada pela rainha; só se você receber o prêmio tal, só se sua obra sair na revista tal, só se, só se, só se.”
Essa atitude de condicionar  o impulso criativo equivale a entupir a alma com alimentos que não nutrem. Uma coisa é receber qualquer tipo de comida, outra bem diferente é ser realmente nutrida. Com enorme freqüência, a lógica do complexo é extremamente falha, muito embora ele tente convencê-la do contrário.
Um dos maiores problemas do complexo criativo está na acusação de que não importa o que você não esteja fazendo, não irá dar certo porque você não está raciocinando com lógica, não está sendo racional, o que você fez até agora não era lógico e, portanto, está fadado ao fracasso. Em primeiro lugar, os estágios básicos da criação não são lógicos  — nem deveriam ser. Se o complexo conseguir interromper seu avanço com essas alegações, você estará nas mãos dele. Diga-lhe que se cale ou que vá embora até você ter terminado. Lembre-se, se a lógica fosse tudo o que há no mundo, certamente todos os homens cavalgariam de lado.
Já vi mulheres cumprindo longos expedientes em empregos que desprezam só para poder comprar objetos caríssimos para a casa, o parceiro, os filhos, enquanto deixam em segundo plano outros talentos consideráveis. Já vi mulheres insistindo em limpar tudo dentro de casa antes de poder se sentar para escrever… e todas sabemos que há algo de curioso na limpeza doméstica… ela  nunca termina. Um jeito perfeito para paralisar uma mulher.
A mulher precisa ter o cuidado de não permitir que o excesso de responsabilidade (ou de respeitabilidade) roubem o tempo necessário para seus êxtases, improvisos e repousos criativos. Ela deve simplesmente fincar o pé e dizer não à metade do que ela acredita ser seu “dever”. A arte não foi feita para ser criada somente em momentos roubados.
A dispersão de planos e projetos, como se pela ação do vento, ocorre quando a mulher tenta organizar uma idéia criadora, e esta de certo modo não pára de ser espalhada, ficando cada vez mais confusa e desorganizada. A mulher não controla a idéia de um modo mais concreto porque, mais uma vez, não tem tempo para fazer todas as anotações e organizá-las, ou pode ser  que ela esteja sendo requisitada por tantas outras coisas que acaba perdendo o fio da meada e não consegue voltar a ele.
Pode também acontecer de o processo criador da mulher ser mal compreendido ou desrespeitado pelos que a cercam, Cabe a ela informar-lhes que, quando ela está com “aquela expressão” nos olhos, isso não quer dizer que ela seja um terreno baldio à espera de que o ocupem. Quer dizer que ela está equilibrando um grande castelo de cartas de idéias na ponta de um único dedo, que está unindo cuidadosamente todas as cartas usando minúsculos ossos cristalinos e um pouquinho de saliva e que, se ao menos conseguir levar tudo até a mesa sem que caia ou se desmorone, ela poderá trazer à luz uma imagem do mundo invisível. Falar com ela nesse momento equivale a criar um vento de Harpia que, com um sopro, destrói toda a estrutura. Falar com ela nesse momento equivale a partir seu coração.
No entanto, a mulher pode agir assim consigo mesma ao descartar suas idéias até que toda a animação se esgote, ao não fazer questão quando outras pessoas se esgueiram levando seus materiais e instrumentos de criação, ao cometer o simples deslize de não comprar os equipamentos corretos para executar corretamente o trabalho criativo, ao parar e recomeçar tantas vezes, permitindo que todo mundo a interrompa à vontade, que o projeto acaba em ruínas.
Se a cultura na qual a mulher vive agride a função criadora dos seus membros, se ela parte ou esfacela qualquer arquétipo ou deturpa sua intenção ou significado, eles serão incorporados em seu estado esfacelado nas psiques dos seus membros da mesma forma, como uma força alquebrada, e não como uma força sã, cheia de vitalidade e potencial.
Quando esses elementos prejudicados — como permitir a vida criadora e como promovê-la — são ativados dentro da psique da mulher, é difícil ter um insight mínimo quanto ao que está errado. Estar dentro de um complexo é o mesmo que estar dentro de um saco preto. Ali dentro é escuro, não conseguimos ver o que nos capturou, só sabemos que fomos apanhadas por alguma coisa. Dessa forma, ficamos temporariamente incapazes de organizar nossos pensamentos ou nossas prioridades e, como animais presos dentro de sacos, começamos a agir sem refletir.
Embora a ação sem reflexão possa ser útil ocasionalmente, como no princípio que diz que a “primeira idéia é a melhor idéia”, nessas circunstâncias ele não se aplica.
No processo de criação envenenado ou paralisado, a mulher oferece ao belo self da alma “comida de mentirinha”. Ela tenta ignorar a condição do espírito. Assim, ela consegue freqüentar um “seminariozinho” aqui, um “cursinho” ali, arranja um “tempinho” para ler mais adiante. Mas, no final das contas, falta a substância. A mulher não está enganando ninguém a não ser a si mesma.
Portanto, quando esse rio morre, ele já não tem sua correnteza, sua força vital.
Os hindus dizem que sem Shakti, a personificação da força vital feminina, Shiva, que abrange a capacidade de agir, se torna um cadáver. Ela é a energia vital que anima o princípio masculino; e o princípio masculino, por sua vez, estimula a ação no mundo.
Vemos, por conseguinte, que o rio precisa apresentar um equilíbrio razoável entre suas poluições e suas purificações, ou tudo resultará em nada. No entanto, a fim de proceder dessa forma, o ambiente imediato precisa ser propício e acessível. É fato que, quanto menos disponíveis os elementos essenciais, como o alimento e a água, o abrigo e a segurança, menores serão as opções. E, quanto menores as opções, menos criativa será a vida, pois a criatividade prospera nas combinações inúmeras e ilimitadas de todas as coisas.
hidalgo destrutivo na história é a parte profunda mas imediatamente reconhecível da mulher ferida. Ele é o seu  animus, o que faz com que ela se esforce, não para criar  — muitas vezes ela não consegue sequer chegar a esse ponto — mas, sim, para obter uma permissão inequívoca, um sólido sistema interno de apoio para que crie à vontade. Espera-se que um  animus saudável se envolva com o funcionamento do rio, e é assim que deve ser. Ele é o auxiliar que observa para ver se é preciso fazer algo. Na história de  La Llorona, porém, ele assume o comando, impedindo a nova vida essencial. A mulher tem, então, um número cada vez menor de opções criativas. O animus conquista o poder de mandar na mulher, de depreciar seu trabalho. Isso ele consegue através da destruição do rio.
Examinemos, em primeiro lugar, os parâmetros do animus em geral.
Passaremos, em seguida, à compreensão de como a vida criativa da mulher se  deteriora quando ocorre uma influência negativa do  animus, bem como ao que ela pode e deve fazer a respeito. A criatividade deve ser um ato de nítida consciência. Um ato que reflita a clareza do rio. O espírito é o homem do rio. Ele é o encarregado. É quem cuida da água e a protege.

Mulheres Que CorremCom Lobos, por Clarissa Pínkola Estés.

Foto: Pandiyan

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