Embaralhei as opiniões que me foram legadas pelos outros. Reembaralhei os fantasmas de batalhas ganhas e perdidas. Onde estão? Você sabe? Um colar de palavras brilhantes, outro livro.
A história de um peregrino recontada. A promessa de outro, o caminho de outro. Cada uma delas, uma bolha de sabão, clara, iridescente— num instante, desaparece. “Eu me rendo”, gritei para o céu pálido e silenciei. Se eu conhecesse a energia que o meu grito desencadeou, teria feito dele o mantra do meu coração — Eu me rendo. Eu me rendo. Eu me rendo.
A entrega é a passagem que nos ensina a confiar no Deus que há dentro de nós, a ter fé no fato de que estamos sendo guiados. A vontade inferior — a minha vontade — é oferecida à vontade superior — à Tua vontade. O Graal Interior está pronto para o vinho novo, e os propósitos mais profundos do nosso caminho de vida são revelados. O conhecimento transforma-se em sabedoria, a visão interior leva à iluminação. É a estação da borboleta alada, da fênix alçando vôo. Há o lugar sagrado dentro de cada um de nós, onde os dois mundos se tocam — o mundo do espírito e o mundo da matéria — onde o interior e o exterior são reconhecidos como um só. É um lugar que está além do inimigo. Quem e o que é o inimigo? O inimigo é a mentira que diz que você é menos do que o espírito criador. O inimigo é a ilusão que usa mil faces, algumas assustadoras, outras comoventes, todas elas seduzindo-nos para acreditar que somos o papel que estamos representando. Em vez de perceber que “eu estou vivenciando uma doença, a riqueza ou o confinamento”, acreditamos, de fato, que “eu estou doente, sou rico ou estou
confinado”. O inimigo continua perfurando o nosso bilhete para entrar na roda cármica, e nós continuamos a comprá-lo.
Porém, não importa quão fascinados e identificados estejamos com as nossas criações, ou com que eficiência representamos nossos papéis, ou quantos mitos tenhamos construído para apoiá-los — todos eles acabam morrendo. Nós não.
A entrega nos aproxima cada vez mais da mudança que ocorre entre o “eu faço” e o “eu sou”. Quando nos concentramos em falsas identidades, a maior parte das nossas energias é despendida para apoio dessas ilusões. Mas, uma vez que a mudança interior se faz para o “eu sou”, então podemos “fazer” com mais imaginação, energia ilimitada e um toque de leveza. Equilibrados no lugar em que o nosso Eu Divino e o nosso Eu Humano se fundem, somos capazes de nos identificar com o espírito e começar a criar com uma percepção consciente no mundo físico.
Aprendemos a estar no mundo, mas a não ser dele.
Uma vez que nos situamos além do inimigo das aparências ilusórias, sabemos que a nossa verdadeira identidade é espírito, essência; sabemos que não somos masculinos ou femininos, ricos ou pobres. Não importa o que aconteça no mundo exterior a partir desse instante, o Eu interior não se perturba. Em cada entrega, passamos a contar mais com essa calma permanente. Viver além do inimigo é aceitar a Graça. E daí a nos tornarmos uma expressão da Graça em todos os papéis que representamos no drama humano é um pequeno passo. Toda vez que uma falsa identidade se entrega, o vazio que ela deixa é preenchido pela Graça. Quando nos movemos conscientemente para dentro de uma linha harmoniosa, de sintonia com a Graça, nós adquirimos uma consciência sobre nós mesmos, somos iluminados e salvos, nas palavras do Senhor Krishna, “do interminável oceano da morte e do renascimento”. Começamos a viver na Terra o amor incondicional. Não estamos mais preocupados com as aparências; respiramos o amor — e, portanto, a Luz — até mesmo lá onde há o acúmulo mais denso de confusão e de ódio. Estamos livres para escolher como e onde vamos aplicar a nossa energia.
Como o espírito permeia todo nível e freqüência de energia, estamos livres para aplicar as leis da criação que governam o nível mental ou para dirigir a energia nos níveis emocional ou físico. Como não estamos mais presos à identificação com qualquer um desses níveis, estamos livres para criar em todos eles. Enquanto estamos sendo torturados pelos desígnios caprichosos do inimigo, olhamos para o mundo ferido e pensamos: “É demais.” Mas, uma vez que estamos livres das ilusões, podemos olhar para o mundo com os olhos do Cristo encarnado e dizer: “O fardo é leve.” Ele não parece tão leve enquanto ainda estamos sendo mantidos prisioneiros de nossas ilusões. Então vamos nos entregando um pouquinho por vez. E cada mudança que percorre o ciclo completo, porque assim o permitimos, ensina-nos um pouquinho mais a deixar que as coisas aconteçam. Toda purificação que suportamos prepara-nos para a libertação e possibilita que o novo recipiente, a nova forma que estamos criando, contenha um pouquinho mais da Graça.
A purificação exige que morramos para o passado. A entrega nos chama para viver no presente. Durante a purificação, somos encurralados até a beira do precipício. E quando nos entregamos, pulamos. Há a história de um famoso rabino muito procurado pela sua sabedoria espiritual. Quando um jovem entrou na casa do rabino depois de uma árdua jornada, ficou muito espantado ao ver que era apenas uma sala simples repleta de livros. Os únicos móveis eram uma mesa e um banco.
— Onde estão os seus móveis? — perguntou o jovem.
— Onde estão os seus? — disse o rabino.
— Os meus? — disse o jovem. — Mas eu sou apenas um visitante aqui.
— Eu também — disse o rabino.
Temos a tendência de falar em “entregar-se” ou na “entrega” — como se finalmente estivéssemos fazendo a escolha de deixar que ela aconteça. Na verdade, é mais uma escolha no sentido de continuar a escolher. Geralmente, ao longo do caminho, dizemos: “Faça-se a Tua Vontade, Senhor”, mas continuamos a sussurrar: “E um pouquinho da minha.” Deixamos que um pouquinho seja liberado, depois reorganizamos e integramos o que restou em novas combinações. Então vivemos fora do novo ambiente até estarmos prontos para liberar mais um pouquinho e depois mais outro.
A entrega abre mão de algo mais que a compulsão; ela abre mão do desejo que abastece a compulsão. A sabedoria de Buda ensina que os nossos desejos é que nos mantêm prisioneiros. Antes que uma antiga forma seja purificada, ela deseja realizar-se. Enquanto ainda restar alguma coisa, ela continuará a dizer: “Eu preciso, eu quero.” É o aprendizado da lenta liberação do desejo que freqüentemente nos mantém na dor da purificação. É realmente uma bênção não sermos liberados da purificação antes que o próprio desejo seja abandonado. De outro modo, o desejo se instalaria no subconsciente e continuaria a fazer parte do ímã criativo que impulsiona as pessoas e as situações para nós sem termos idéia do porquê. O desejo é o último resto de ilusão a que o Ego-Eu está se entregando. Até o fim, ele continua insistindo: “Se eu ao menos realizar isto ou conseguir aquilo, serei feliz.” Nós achamos que, quando conseguirmos o que desejamos, estaremos salvos.
Como Helen Keller disse certa vez: “A segurança é, na maioria das vezes, uma superstição. A longo prazo, evitar o perigo não é mais seguro do que viver inteiramente a experiência. A vida é uma aventura ousada ou então não é nada.”
As 7 Etapas de Uma Transformação Consciente, p. 250
Foto: Temari 09