Você, como eu, já se questionou sobre a origem dos “valores”, tais como os conhecemos? O que é considerado “bom” ou “mal” nas sociedades seriam conceitos “puros”, “absolutos” ou “fabricados” e ” relativos”? O “bom” é um valor que sempre existiu em si?
Eu sempre me incomodei com isso, sabe? Desde a minha infância. Até porque eu não fui uma criança muito “boazinha” aos olhos dos adultos, sabe como é? Apanhei muito por isso, mas não me emendava…é que eu sempre fui “boa” do meu jeito.
Vários anos depois, sendo eu já adolescente, me caiu nas mãos um livro de um filósofo meio maluco chamado Friedrich Nietzsche, intitulado A Genealogia da Moral. Eu enlouqueci com o livro e com Nietzsche! Achei-o genial e proibido, me trouxe tanto sentido ao mundo que eu nunca consegui me esquecer dele. Vira e mexe, eu me vejo de novo (como hoje) com o tal livro de Nietzsche nas mãos, devorando a sua ousadia, a sua liberdade, a sua genialidade. E junto com o que aprendemos com Luiz Gasparetto sobre a “síndrome do bonzinho”, aí então é que Nietzsche faz mais e mais sentido para mim.
Deixa eu mostrar o que Nietzsche diz sobre os “bons” e então fecho o assunto com o que Luiz Gasparetto fala, que tal? Essa será uma reflexão das boas, do jeito que eu gosto. Pretendo que seja mais simplista, mesmo porque não sou filósofa, só gosto de pensar…mas então vamos a ela!
Nietzsche diz (Genealogia da Moral, Ed Cia das Letras, 1999, p. 18) que a origem do juízo de “bom” para a maioria dos filósofos (não para ele!) adviria de ações não egoístas que foram praticadas e louvadas, sendo então consideradas boas por aqueles que as recebiam, uma vez que as consideravam úteis; com o passar do tempo, foi esquecido o louvor a essas ações não egoístas (e úteis), e elas foram simplesmente consideradas boas por terem sido sempre, costumeiramente, tidas como boas, como se em si mesmas essas ações fossem boas.
Engraçado, não? Perdeu-se a origem e se dá o costume, como sabedoria ou valor em si.
Porém Nietzsche vai mais longe, explicando que o juízo de “bom” não provém daqueles a quem se fez o bem. Foram os “bons” mesmo – os nobres da época – que eram os poderosos, os superiores em posição e pensamento que sentiram e estabeleceram SEUS próprios atos como “bons”, ou seja, de “primeira ordem”, em oposição a tudo que era “baixo”, “vulgar” e “plebeu”. Desse distanciamento é que esses “nobres” e ” superiores” tomaram para si o direito de criar valores e dar-lhes nomes, independentemente de qualquer eventual “utilidade” que tivessem! Assim surge o “bom” e o “ruim”: do distanciamento entre o dominante sentimento global da elevada estirpe senhorial – os BONS – e sua relação com uma estirpe baixa, plebéia – os RUINS.
Então, segundo Nietzsche, já no princípio a palavra “bom” não foi ligada necessariamente a ações não egoístas, como até hoje poderíamos supor. “Bons” eram os atos praticados por pessoas “nobres”, “superiores” ou de alta estirpe e os atos “ruins”,por outro lado, eram aqueles praticados pelos “inferiores”, “plebeus”, de baixa estirpe. Este é um primeiro ponto que destaco na questão.
Segundo ponto de destaque, de acordo com meu filósofo favorito: a transformação conceitual. Assim, “nobre”, “aristocrático” que são termos a partir dos quais se desenvolveu o conceito de “bom” no sentido social , como vimos, torna-se o conceito base para o desenvolvimento do conceito de “bom”, como sendo espiritualmente nobre, aristocrático, bem nascido ou espiritualmente privilegiado, e ainda confere a esses nobres homens de categoria superior um traço típico de caráter, uma vez que eles se auto-denominam de “os verazes” (aqueles que têm realidade, que são reais, verdadeiros), diferenciando-se do homem comum ou “mentiroso”. Dessa regra – a de que o conceito de proeminência político-social sempre resulta no conceito de proeminência espiritual – podemos entender o fato de a classe mais elevada ser também a classe sacerdotal.
Com os sacerdotes tudo se torna mais perigoso: desde as artes médicas até os sentimentos de altivez, vingança, perspicácia, dissolução, amor, sede de domínio, virtude, doença. Mas na visão de Nietzsche, somente no âmbito dessa forma essencialmente perigosa de existência humana (a sacerdotal) é que o homem se tornou um animal interessante, pois então a alma humana ganhou profundidade num sentido superior e tornou-se má…
Mas vieram os judeus e foram eles que, com apavorante coerência, segundo Nietzsche (p. 26), ousaram inverter a equação dos valores aristocráticos (que rezava que bom=nobre=poderoso=belo=feliz=querido dos deuses) e com unhas e dentes se apegaram a essa inversão: apenas os miseráveis são os bons; somente os pobres, impotentes, baixos são os bons; os sofredores, os necessitados, os feios, os doentes são os únicos beatos, os únicos abençoados, e unicamente para eles há bem-aventuranças – mas vocês, nobres e poderosos, vocês serão por toda a eternidade os maus, os cruéis, os lascivos,os insaciáveis, os ímpios, serão também eternamente desventurados, malditos e danados!
Terceiro ponto a considerar: é com os judeus que se inicia a revolta dos escravos na moral, e nas palavra de Nietzsche: aquela rebelião que tem atrás de si dois mil anos de história, e que hoje perdemos de vista porque foi vitoriosa…
(Continua…)