Embora a jovem tente seguir as ordens do predador e concorde em manter sua ignorância acerca do segredo oculto nos subterrâneos do castelo, ela só pode agir assim durante um determinado período. Afinal ela apresenta a chave, a pergunta, à porta e descobre a horrenda carnificina em algum ponto da sua vida profunda. E essa chave, esse minúsculo símbolo da vida, de repente não pára de sangrar, não pára de soltar o grito de que há algo de errado. Uma mulher pode tentar se esconder para não ver as devastações da sua vida, mas o sangramento, a perda da energia da vida, continuará até que ela reconheça a real natureza do predador e o domine.
Quando as mulheres abrem as portas das suas próprias vidas e examinam o massacre nesses cantos remotos, na maior parte das vezes elas descobrem que estiveram permitindo o assassinato de seus sonhos, objetivos e esperanças mais cruciais. Encontram sem vida idéias, sentimentos e desejos; aquilo que um dia foi gracioso e promissor está agora esgotado até sua última gota de sangue. Se esses sonhos e esperanças estiverem vinculados ao desejo de um relacionamento, de uma realização, de obter sucesso, ou de uma obra de arte, quando ocorre essa apavorante descoberta na psique, podemos ter certeza de que o predador natural, também freqüentemente simbolizado nos sonhos como o noivo animal, esteve trabalhando metodicamente na destruição dos desejos mais caros à mulher.
A personagem do noivo animal é um marco na psique, representando algo perverso disfarçado como algo benévolo. Essa caracterização ou algo dela aproximado está sempre presente quando uma mulher nutre pressentimentos ingênuos acerca de alguma coisa ou de alguém. Quando uma mulher tenta ignorar os fatos das suas próprias devastações, seus sonhos noturnos gritarão avisos para ela, avisos e exortações para acordar! Pedir ajuda! Fugir! Ou dar o golpe final! Com o passar dos anos, soube de muitos sonhos de mulheres com essa característica do noivo animal ou essa aura de as-coisas-não-são-tão-boas-quanto-parecem. Uma mulher sonhou com um homem belo e encantador, mas, quando baixou os olhos, viu que começava a se desenrolar da sua manga uma ameaçadora espiral de arame farpado. Outra mulher sonhou que estava ajudando um velho a atravessar a rua, e o velho de repente sorriu diabolicamente para ela e “derreteu-se” no seu braço, causando uma queimadura profunda. Ainda uma outra sonhou que estava fazendo uma refeição com um amigo desconhecido cujo garfo atravessou a mesa voando para feri-la mortalmente.
Essa incapacidade de ver, de compreender, de perceber que nossos desejos interiores não são concomitantes com nossos atos exteriores — é esse o rastro deixado pelo noivo animal. A presença desse fator na psique esclarece o motivo pelo qual as mulheres que dizem desejar um relacionamento fazem tudo que podem para sabotar um relacionamento afetuoso. É assim que mulheres que fixam metas para estar aqui, ali ou no lugar que seja até uma certa data nem mesmo dão o primeiro passo naquela direção, ou abandonam a jornada ante a primeira dificuldade. É assim que todos os adiamentos dão origem ao ódio a si mesma; todos os sentimentos de vergonha são reprimidos e colocados de lado para se exacerbarem; todos os recomeços tão necessários e todos os finais já há muito atrasados não se realizam. Onde quer que o predador se esgueire e atue, tudo é descarrilado, demolido e decapitado.
O noivo animal é um símbolo amplamente disseminado nos contos de fadas, sendo que o enredo obedece ao seguinte padrão: um desconhecido corteja uma jovem que concorda em casar com ele, mas antes do dia da cerimônia ela vai dar um passeio no bosque, perde-se e, quando escurece, sobe numa árvore para se proteger de predadores. Enquanto espera que a noite transcorra, chega por ali seu prometido com uma pá no ombro. Algo em seu futuro marido deixa transparecer que ele não é realmente um ser humano. Às vezes, pode ser uma deformação no pé, na mão, no braço ou algo em seu cabelo que é decididamente estranho e que o denuncia.
Ele começa a cavar uma cova embaixo da mesma árvore em que ela se encontra, cantarolando e resmungando o tempo todo sobre como vai matar sua última noiva e enterrá-la nessa cova. A moça apavorada fica escondida a noite inteira e, pela manhã, quando o noivo se foi, ela corre para casa, conta a história para o pai e os irmãos, e os homens armam uma emboscada para o noivo animal e o matam.
Esse é um poderoso processo arquetípico na psique das mulheres. A mulher tem uma percepção adequada e, embora ela também a princípio concorde em desposar o predador natural da psique, embora ela também passe um período perdida na psique, ela no final consegue sair pois é capaz de penetrar na verdade total, é capaz de manter-se consciente da existência dele e de tomar uma atitude para resolver o caso.
Ah, é então que chega a etapa seguinte, ainda mais difícil: a de ser capaz de suportar o que se vê, toda a autodestruição e entorpecimento.
CLARISSA PINKOLA ESTÉS, em Mulheres Que Correm Com Lobos.
Foto: Marco Crupi