A Pedido: O Conto do Barba Azul e Mais Elucidações

Amigos queridos, recebi em meu email pessoal várias mensagens me pedindo que continuasse a publicar os textos de Clarice Pinkola Estés sobre os arquétipos povoadores dos sonhos femininos e suas interpretações.

Obrigada a todas que me escreveram elogiando o Blog e querendo saber mais sobre si mesmas! Fico extremamente feliz por isso e uno-me a vocês nesse despertar  😉

Assim, voilá....mais elucidações sobre o conto “O Barba Azul”.

Cheiro de sangue

No conto O Barba Azul, as irmãs fecham com violência a porta da câmara da morte. A jovem esposa tem os olhos fixos no sangue na chave. Um gemido sobe de dentro dela. “Preciso limpar esse sangue, ou ele saberá!”

Agora o self ingênuo tem conhecimento de uma força assassina solta dentro da psique. E o sangue na chave é sangue de mulher. Se fosse apenas sangue do sacrifício de fantasias frívolas, haveria na chave apenas uma pequena marca. Trata-se, porém, de algo muito mais sério pois o sangue representa o extermínio dos aspectos mais profundos e íntimos da vida criativa e da alma.

Nesse estado, a mulher está perdendo sua energia para criar, quer sejam soluções para amenizar questões da sua vida como a educação, a família, as amizades, quer se trate dos seus objetivos, seu desenvolvimento pessoal, sua arte. Isso não é um mero adiamento, pois prossegue por semanas e meses a fio. A mulher parece arrasada, talvez cheia de idéias, mas com uma anemia profunda e cada vez mais incapaz de realizá-las.

O sangue nesse conto não é o sangue menstrual, mas sangue arterial, da alma. Ele não mancha só a chave; ele escorre pela persona inteira. O vestido que está usando bem como todos os outros no guarda-roupa ficam manchados. Na psicologia arquetípica, a roupa simboliza a presença externa. Ela é a máscara que a pessoa mostra ao mundo. Ela esconde muita coisa. Com disfarces e enchimentos psíquicos adequados, tanto os homens quanto as mulheres podem apresentar ao mundo uma persona quase perfeita, uma fachada quase perfeita.

Quando a chave que chora — ou a pergunta que clama — mancha nossas personae, não conseguimos mais esconder nossas dificuldades. Podemos dizer o que quisermos, mostrar a expressão mais sorridente, mas, uma vez tendo visto a verdade revoltante da câmara da morte, não podemos mais fingir que ela não existe. E ver a verdade faz com que esgotemos nossa energia ainda mais. É doloroso; é um corte na artéria. Precisamos tentar corrigir imediatamente esse terrível estado.

Portanto, nesse conto de fadas, a chave também funciona como recipiente. Ela contém o sangue, que é a recordação do que se viu e do que se sabe. Para as mulheres, a chave sempre simboliza o acesso a um mistério ou ao conhecimento. Nos contos de fadas, a chave é muitas vezes representada por palavras como, por exemplo, “Abre-te, Sésamo”, que Ali Babá grita para uma montanha anfractuosa, fazendo com que a mesma ribombe e se abra para ele poder entrar. Num estilo mais picaresco, nos estúdios de Disney, a fada-madrinha de Cinderela entoa “Bibbity-bobbity-boo!”, e abóboras viram carruagens e camundongos, cocheiros.

Nos mistérios de Elêusis, a chave era escondida sobre a língua, dando a entender que o enigma, a pista, o indício estavam num conjunto especial de palavras, de perguntas-chave. E as palavras de que as mulheres mais precisam em situações semelhantes às descritas na história do Barba-azul são as seguintes: O que está atrás da porta? O que não é como aparenta ser? O que eu sei no fundo de mim mesma que preferia não saber? Que parte de mim foi morta ou está agonizando?

Todas essas perguntas são chaves. E é muito provável que as respostas a essas quatro questões apareçam manchadas de sangue. O aspecto assassino da psique, cuja tarefa consiste parcialmente em impedir que ocorra a conscientização, continuará a fazer verificações ocasionais e a arrancar ou envenenar qualquer novo rebento. É a sua natureza. É a sua função.

Por isso, num sentido positivo, é somente a insistência do sangue na chave que faz com que a psique grave o que viu. É que existe uma censura natural em todos os acontecimentos negativos e dolorosos que ocorrem em nossas vidas. O ego censor sem sombra de dúvida deseja esquecer que viu o quarto, que viu os cadáveres. É por isso que a esposa do Barba-azul tenta esfregar a chave com o esfregão de crina. Ela tenta tudo o que conhece, todos os remédios para lacerações e ferimentos profundos da medicina popular das mulheres: teia de aranha, cinzas de fogo — todos associados à urdidura da vida e da morte pelas Parcas. No entanto, ela não consegue cauterizar a chave; nem consegue encerrar o processo fingindo que ele não ocorre. Ela não consegue fazer a chavinha parar de chorar sangue. Paradoxalmente, à medida que sua vida antiga está morrendo e até mesmo os melhores remédios não conseguem esconder esse fato, ela está alerta para sua perda de sangue e, portanto, apenas começando a viver.

A mulher previamente ingênua precisa encarar o que ocorreu. O assassinato cometido pelo Barba-azul de todas as suas esposas “curiosas” é o assassinato da criatividade feminina, aquela que tem o potencial para desenvolver todos os tipos de aspectos novos e interessantes. O predador é especialmente agressivo ao armar emboscadas para a natureza selvagem da mulher. No mínimo, ele procura escarnecer da ligação da mulher com seus insights, suas inspirações, sua persistência e tudo o mais: e, no máximo, ele tenta romper essa ligação.

Uma outra mulher com quem trabalhei, pessoa talentosa e inteligente, contou-me a história da sua avó que morava no Meio-Oeste. A imagem de felicidade dessa avó consistia em tomar o trem até Chicago usando um belo chapéu e sair caminhando pela Michigan Avenue, olhando todas as vitrinas e sentindo-se elegante. Por um motivo ou outro, ou talvez pelo destino, ela se casou com um homem do campo. Eles foram morar no meio da região tritícola, e a mulher começou a definhar na elegante casa de fazenda que era pequena, exatamente do tamanho certo, com todos os filhos certos e o marido certo. Ela já não tinha mais tempo para a vida “frívola” que havia levado no passado. “Filhos demais.” “Serviços domésticos demais.”

Um dia, anos mais tarde, depois de lavar o piso da cozinha e da sala de estar com as próprias mãos, ela vestiu sua melhor blusa de seda, abotoou sua saia longa e colocou seu chapelão na cabeça. Empurrou o cano da espingarda do marido contra o céu da boca e puxou o gatilho. Qualquer mulher viva sabe por que ela lavou o chão antes.

Uma alma faminta pode ficar tão cheia de dor que a pessoa não consegue suportar mais. Como as mulheres têm uma necessidade profunda da alma se expressar em seus próprios estilos de alma, elas precisam se desenvolver e florescer de um modo que faça sentido para elas, sem serem molestadas pêlos outros. Nesse sentido, a chave com o sangue poderia também representar as linhagens femininas que vieram antes de cada mulher. Quem dentre nós não conhece pelo menos uma mulher amada que perdeu seus instintos para fazer boas opções na vida e foi, assim, forçada a viver uma vida alienada ou pior? Talvez você mesma seja essa mulher.

Uma das questões menos discutidas a respeito do processo de individuação é a de que, à medida que se lança luz sobre as trevas da psique com a maior intensidade possível, a sombra, onde a luz não alcança, fica ainda mais escura. Portanto, quando iluminamos alguma parte da psique, disso resulta uma escuridão mais profunda com a qual temos de lutar. Não se pode deixar de lado essa escuridão. A chave, ou as perguntas, não pode ser ocultada nem esquecida. As perguntas precisam ser feitas. Elas precisam obter resposta.

O trabalho mais profundo é geralmente o mais sombrio. Uma mulher corajosa, uma mulher que procura ser sábia, irá urbanizar os terrenos psíquicos mais pobres, pois, se ela construir apenas nos melhores terrenos da psique, terá uma visão mínima de quem realmente é. Portanto, não tenha medo de investigar o pior. Isso só lhe garante um aumento no poder da sua alma.

É nesse tipo de urbanização psíquica que a Mulher Selvagem brilha. Ela não tem medo da treva mais profunda pois na realidade consegue ver no escuro. Ela não tem medo de vísceras, dejetos, podridão, fedor, sangue, ossos frios, moças moribundas e maridos assassinos. Ela tem condições de ver tudo, de suportar tudo, de ajudar. E é isso o que a irmã mais nova no conto do Barba-azul está aprendendo.

Os esqueletos na câmara representam, sob a ótica mais positiva, a força indestrutível do feminino. Arquetipicamente, os ossos representam aquilo que não pode nunca ser destruído. A simbologia dos ossos nas histórias revela essencialmente que existe algo na psique que é difícil de destruir. Nosso único bem que é difícil de destruir é nossa alma.

Quando falamos da essência feminina, estamos realmente falando da alma feminina. Quando falamos de corpos espalhados no subterrâneo, estamos afirmando que algo aconteceu à força da alma e no entanto, muito embora sua vitalidade exterior tenha sido roubada, muito embora sua vida tenha essencialmente sido esmagada, ela não foi destruída por completo. Ela pode voltar a viver.

Ela volta a viver através da jovem esposa e das suas irmãs, que afinal conseguem romper com o antigo modelo de ignorância e contemplar o horror sem desviar o olhar. Elas são capazes de ver e de suportar o que vêem.

Aqui estamos novamente no lugar de La Loba, na caverna do arquétipo da mulher dos ossos. Aqui temos restos do que um dia foi uma mulher inteira. Contudo, ao contrário dos aspectos cíclicos da vida e da morte do arquétipo da Mulher Selvagem, que toma a vida que está pronta para morrer, a incuba e a devolve ao mundo, o Barba-azul apenas mata a mulher e a desmembra até ela se resumir a nada além de ossos. Ele não lhe deixa beleza, amor, identidade, e por isso nenhuma capacidade de agir em sua própria defesa. Para consertar esse aspecto, nós, enquanto mulheres, devemos contemplar o assassino que nos mantém sob controle, observar os resultados do seu trabalho medonho, registrar tudo conscientemente, mantê-lo na consciência, e depois agir.

Os símbolos do calabouço, da masmorra e da caverna estão todos inter-relacionados. Eles são antigos ambientes iniciáticos: um lugar ao qual ou através do qual a mulher desce até o(s) assassinado (s), onde desrespeita tabus para descobrir a verdade e de onde, através da inteligência e/ou do sofrimento, sai vitoriosa ao expulsar, transformar ou exterminar o assassino da psique. O conto delineia para nós as tarefas com instruções claras: descubra os corpos, siga os instintos, veja o que estiver vendo, reúna energia psíquica, acabe com a energia destrutiva.

Se uma mulher não examinar essas questões do seu próprio entorpecimento e assassinato, ela permanecerá obediente aos ditames do predador. Uma vez que ela abra aquele aposento na psique que mostra como está morta e retalhada, ela perceberá como diversas partes da sua natureza feminina e de sua psique instintiva foram extirpadas e tiveram uma morte indigna por trás de uma fachada de prosperidade. Agora que ela percebe isso, agora que registra como está presa e quanto da sua vida psíquica está em jogo, agora, sim, ela pode fazer algo ainda mais poderoso.

CLARISSA PINKOLA ESTÉS, em Mulheres Que Correm Com Lobos.

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