A morte na casa do amor

A incapacidade de encarar a Mulher-Esqueleto e de desenredá-la é o que provoca o fracasso de muitos relacionamentos de amor. Para amar é preciso não só ser forte, mas também sábio. A força vem do espírito. A sabedoria, da Mulher-Esqueleto.

Como vemos na história, se quisermos ser alimentados por toda a vida, precisaremos encarar e desenvolver um relacionamento com a natureza da vida-morte-vida. Quando temos esse tipo de relacionamento, não saímos mais por aí à caça de fantasias, mas nos tornamos conhecedores das mortes necessárias e nascimentos surpreendentes que criam o verdadeiro relacionamento.

Quando encaramos a Mulher-Esqueleto, aprendemos que a paixão não é alguma coisa que se vai “obter” mas, sim, algo gerado em ciclos e distribuído.  É a Mulher-Esqueleto que demonstra que uma vida compartilhada, nos fluxos e refluxos, em todos os finais e
reinícios, é o que cria um inigualável amor de devoção.
Essa história é uma imagem adequada para o problema do amor moderno, o medo da natureza da vida-morte-vida, em especial do aspecto morte. Em grande parte da cultura ocidental, o personagem original da natureza da morte foi encoberto por vários dogmas e doutrinas até o ponto em que se separou de vez da sua outra metade, a vida. Fomos ensinados, equivocadamente, a aceitar a forma mutilada de um dos aspectos mais básicos e profundos da natureza selvagem. Aprendemos que a morte é sempre acompanhada de mais morte. Isso simplesmente não é verdade. A morte está sempre no processo de incubar uma vida nova, mesmo quando nossa existência foi retalhada até os ossos.
Em vez de considerar os arquétipos da morte e da vida como opostos, devemos encará-los juntos como o lado esquerdo e o direito de um único pensamento. É fato que dentro de um único relacionamento  amoroso existem muitos finais. Mesmo assim, de algum modo e em algum ponto nas delicadas camadas do ser criado quando duas pessoas se amam, existe um coração e um alento. Enquanto um lado do coração se esvazia, o outro se enche. Quando uma respiração termina, outra se inicia.
Se acreditarmos que a força da vida-morte-vida não tem mais nenhum papel depois da morte, não é de se estranhar que alguns seres humanos tenham pavor do compromisso. Eles têm um medo horrível de passar por um final que seja. Não conseguem suportar a ideia de passar da varanda para os aposentos do interior da casa. Têm medo porque pressentem que lá na copa da casa do amor está sentada A Morte, batendo com o dedo do pé no chão, dobrando e redobrando suas luvas. Diante dela está uma lista de tarefas: de um lado, os que estão vivendo; do outro, os que estão morrendo. Ela pretende terminar seu trabalho. Está determinada a manter um equilíbrio.
O arquétipo da força da vida-morte-vida é extremamente mal compreendido em muitas culturas modernas. Algumas não entendem mais que A Morte é carinhosa e que a vida se renovará com seu auxílio. Em muitos folclores, ela recebe uma atenção sensacionalista: diz-se que carrega uma grande foice para “ceifar” a vida dos que de
nada suspeitam, que beija suas vítimas e deixa cadáveres espalhados por onde passa, ou que ela os afoga e fica uivando noite adentro.
Em outras culturas, porém, como na do leste da Índia e na cultura Maia, que têm maior cuidado com o ensino sobre a roda da vida e da morte, A Morte abraça os que já estão morrendo, abrandando sua dor e proporcionando alívio. Diz-se que ela vira o bebê no útero para a posição de cabeça para baixo a fim de que ele possa nascer. Diz-se que ela guia as mãos da parteira, que abre o caminho para o leite nos seios maternos e que ainda consola quem quer que esteja chorando sozinho. Em vez de criticá-la, quem a conhece em seu ciclo completo respeita sua generosidade e suas lições.
Em termos arquetípicos, a natureza da vida-morte-vida é um componente básico da natureza instintiva. Esse componente aparece em todas as mitologias e no folclore do mundo como  Dama del Muerte, A Morte, Coatlique, Hel, Berchta, Ku’an Yin, Baba Yaga, a Dama de Branco, a Misericordiosa Beladona e como um grupo de mulheres chamadas pêlos gregos de Graeae, as Damas Cinzentas. Desde a Banshee, em sua carruagem feita de nuvens da noite, até La Llorona, a mulher que chora junto ao rio, desde o anjo sombrio que afaga os seres humanos com a ponta de uma asa, fazendo com que caiam em êxtase, até o fogo-fátuo que aparece quando uma morte é iminente, as histórias estão repletas de remanescentes de antigas encarnações da deusa da vida-morte-vida.
Grande parte do nosso conhecimento da natureza da vida-morte-vida é contaminada pelo nosso medo da morte. Portanto, nossa capacidade para acompanhar os ciclos da natureza da vida-morte-vida é muito frágil. Essas forças não “fazem” nada a nós. Elas não são ladrões que nos roubam aquilo que prezamos. Essa natureza não é um motorista irresponsável que destrói o que valorizamos e foge em alta velocidade.
Não, não, as forças da vida-morte-vida fazem parte da nossa própria natureza, como uma autoridade interna que sabe os passos, que conhece a dança da vida e da morte. Ela é composta pelas partes de nós mesmas que sabem quando algo pode e deve nascer e quando ele deve morrer. Trata-se de um mestre profundo, se ao menos aprendermos seu ritmo.

Rosário Castellanos, poeta e mística mexicana, escreve acerca da entrega às forças que governam a vida e a morte:

… dadme la muerte que me falta…
… dá-me a morte que preciso…

Os poetas compreendem que não há nada de valor sem a morte. Sem a morte, não há lições; sem a morte não há o fundo escuro contra o qual o diamante cintila.
Enquanto aqueles que são iniciados não têm medo da Morte, a cultura muitas vezes nos incita a jogar a Mulher-Esqueleto pelo penhasco abaixo, não só por ela ser apavorante, mas também porque demora muito para que aprendamos a lidar com ela. Um mundo desalmado estimula cada vez maior rapidez na procura desenfreada daquele único filamento que parece ser aquele que arderá imediatamente e para sempre. No entanto, o milagre que estamos procurando leva tempo: tempo para encontrá-lo, tempo para trazê-lo à vida.
A busca moderna pela máquina do movimento perpétuo equivale à busca de uma máquina de amor perpétuo. Não surpreende que as pessoas que tentam amar fiquem confusas e atormentadas e que, como na história dos sapatinhos vermelhos de Hans Christian Andersen, dancem loucamente, incapazes de parar com a agitação frenética, e passem rodopiando direto pelas coisas que, no fundo do coração, elas mais prezam.

Existe, porém, outra maneira, melhor, que leva em consideração as fraquezas, os medos e as singularidades do ser humano. E, como ocorre com tanta freqüência nos  ciclos da individuação, a maioria de nós simplesmente se depara com ela por acaso.

Mulheres Que Correm Com Lobos, de Clarissa Pínkola Estés.

Foto: CopCat Ragu

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