Enquanto o pescador dorme, uma lágrima se solta do canto do seu olho. A Mulher-Esqueleto a percebe, sente uma sede imensa e se arrasta desajeitada até ele para beber do seu olho. Nós nos perguntamos com o que ele estava sonhando que poderia produzir uma lágrima dessas?
As lágrimas detêm poder criativo. Nas mitologias, o surgimento de lágrimas provoca uma criação imensa e uma união sincera. No folclore das ervas, as lágrimas são usadas como um aglutinante, para prender elementos, unir idéias, reunir almas. Nos contos de fadas, quando as lágrimas brotam, elas espantam ladrões ou provocam inundações nos rios. Quando são salpicadas, invocam os espíritos. Quando derramadas sobre um corpo, curam lacerações e restauram a visão. Quando tocadas, causam a concepção.
Quando se chegou até esse ponto no relacionamento com a natureza da vida-morte-vida, a lágrima vertida é a lágrima da paixão e da compaixão combinadas, por si mesmo e pelo outro. É a lágrima mais difícil de ser derramada, especialmente para os homens e certos tipos de mulheres “calejadas pela vida urbana”.
Essa lágrima da paixão e da compaixão surge na maioria das vezes depois da descoberta acidental do tesouro, depois da perseguição apavorante, depois de o esqueleto ser desembaraçado — pois é uma combinação desses atos que gera a exaustão, a derrubada das defesas, o exame de si mesmo, o despir-se até os ossos, o desejo tanto de conhecimento quanto de alívio. Tudo isso faz com que a pessoa investigue o que a alma realmente quer e chore pela perda e pelo amor de ambos.
Tão certo quanto o fato de a Mulher-Esqueleto vir à tona, agora essa lágrima, esse sentimento no homem, também chega à superfície. Ela é uma aula de amor a si mesmo e ao outro. Despido, agora, de todos os espinhos, anzóis e facas do mundo diurno, o homem atrai a Mulher-Esqueleto para se deitar ao seu lado, para beber e se nutrir com seu sentimento mais profundo. Nessa sua nova forma, ele é capaz de saciar a sede do outro.
O espírito da Mulher-Esqueleto foi invocado pelo seu pranto — idéias e forças de partes remotas do mundo psíquico unem-se no calor da sua lágrima. A história do símbolo da água como criador, como caminho, é antiga e variada. A primavera chega com uma chuva de lágrimas. A entrada para o mundo subterrâneo ocorre com uma cascata de lágrimas. Uma lágrima, percebida por uma pessoa bondosa, é compreendida como um pedido de aproximação. E assim chora o pescador, e a mulher se aproxima um pouco mais. Sem aquela lágrima, ela continuaria sendo só ossos. Sem aquela lágrima, ele nunca despertaria para o amor.
A lágrima de quem sonha surge quando aquele que virá a ser um amante se permite sentir seus próprios ferimentos e curá-los, quando ele se permite ver a autodestruição provocada pela perda da sua fé na bondade do self, quando ele se sente isolado do ciclo protetor e revitalizante da natureza da vida-morte-vida. É então que ele chora, por sentir sua solidão, uma imensa saudade daquele local psíquico, daquele saber primitivo.
É assim que o homem se cura, e que aumenta sua capacidade de compreensão. Ele assume a função de criar seu próprio remédio; ele assume a tarefa de alimentar o “outro extinto”. Com suas lágrimas, ele começa a criar.
Amar o outro não basta. Não basta “não ser um estorvo” na vida do outro. Não basta “dar apoio”, “estar disponível quando necessário” e tudo o mais. O objetivo é estar familiarizado com os métodos da vida e da morte, na nossa própria vida e numa visão panorâmica. E o único meio de se chegar a ser um homem familiarizado consiste em aprender a lição nos ossos da Mulher-Esqueleto. Ela está esperando pelo sinal de sentimento profundo, por aquela única lágrima que diz: “Admito o ferimento.”
Essa simples admissão alimenta a natureza da vida-morte-vida. Ela cria o vínculo e faz com que comece a surgir no homem o conhecimento profundo. Todos nós já cometemos o erro de pensar que uma outra pessoa podia ser nossa cura, nossa emoção, nossa realização. Leva muito tempo para se descobrir que isso não existe, especialmente porque pomos o ferimento na parte externa em vez de ministrar-lhe a cura dentro de nós.
Talvez não exista nada que uma mulher deseje mais de um homem do que a atitude de ele desmanchar suas projeções e encarar seu próprio ferimento. Quando o homem enfrenta seu ferimento, a lágrima surge naturalmente, e suas lealdades internas e externas se tornam mais fortes e definidas. Ele se transforma no seu próprio curandeiro. Não se sentirá mais solitário à procura do Self profundo. Ele não mais procura a mulher para ser seu analgésico.
Existe uma história que descreve bem esse aspecto. Na mitologia grega, havia um homem chamado Filóctetes. Diz-se que ele herdou o arco e flecha mágicos de Héracles. Filóctetes recebeu um ferimento no pé durante um combate. Esse ferimento, porém, não sarava. Pelo contrário, ele se tornou tão fétido e os gritos de dor tão horríveis que seus companheiros o abandonaram na ilha de Lemnos, deixando-o lá para morrer.
Filóctetes mal conseguia se alimentar usando o arco e flecha de Héracles para caçar pequenos animais. Seu ferimento, no entanto, supurou; e o cheiro foi ficando cada vez mais forte, de tal forma que qualquer navegante que se aproximasse da ilha, mesmo de longe, tinha de se desviar. Um grupo de homens, porém, conspirou para enfrentar o fedor do ferimento de Filóctetes a fim de roubar dele o arco e flecha mágicos.
Os homens tiraram a sorte, e a tarefa coube ao mais jovem. Os mais velhos o incentivaram a agir rápido e a viajar sob a proteção da noite. O jovem, portanto, içou as velas. Com o vento, porém, e superando o cheiro do mar, vinha um outro odor tão horrível que o rapaz precisou enrolar o rosto num pano molhado na água do mar para poder respirar. Nada, porém, conseguia proteger seus ouvidos dos gritos lancinantes de Filóctetes.
A lua estava envolta em nuvens. Isso é bom, pensou ele enquanto atracava o barco e se esgueirava até o torturado Filóctetes. Quando ele estendeu a mão para pegar os preciosos arco e flecha, a lua subitamente iluminou o rosto sofrido do velho agonizante. E algo no rapaz — ele não sabia dizer o quê — de repente o fez chorar. Ele foi dominado por uma compaixão e uma misericórdia persistentes.
Em vez de roubar o arco e a flecha do velho, o rapaz limpou o ferimento, preparou uma atadura e permaneceu ao seu lado, alimentando-o, limpando-o, acendendo o fogo e cuidando do velho até poder carregá-lo para Tróia, onde Esculápio, o médico semidivino, poderia curá-lo.
A lágrima da compaixão é derramada em reação à percepção do ferimento fétido. Este tem origens e configurações diferentes para cada pessoa. Para alguns, ele representa dedicar toda uma vida a escalar penosamente uma montanha para descobrir, tarde demais, que se estava subindo na montanha errada. Para outros, ele reside em questões não-resolvidas e não-tratadas de abusos sofridos na infância. Para outros ainda, ele é algum tipo de perda esmagadora na vida ou no amor.
Um rapaz sofreu a perda do seu primeiro amor sem ter o apoio de ninguém e sem ter nenhuma noção de como poderia se recuperar. Durante anos a fio, ele vagueou em desalento, sempre negando que estivesse ferido. Outro homem era um jogador principiante numa equipe de beisebol profissional. Um acidente causou dano permanente a uma perna sua, e o sonho de uma vida inteira desapareceu da noite para o dia. O ferimento repugnante não estava apenas na tragédia, no dano físico, mas também no fato de o único bálsamo derramado sobre o ferimento durante vinte anos ter sido o rancor, abuso de drogas e as bebedeiras. Quando os homens sofrem de feridas semelhantes, dá para se sentir o cheiro de longe. Não há mulher, não há amor, não há carinho que cure um problema desses; somente a compaixão pelo próprio estado.
Quando o homem verte a lágrima, é que ele se deparou com a própria dor; e ele a reconhece ao tocá-la. Ele percebe como sua vida foi vivida de forma protegida em virtude do ferimento. Percebe tudo o que perdeu na vida devido ao ferimento. Vê como cerceou seu amor à vida, a si mesmo e ao outro.
Nos contos de fadas, as lágrimas transformam as pessoas, fazendo com que se lembrem do que é importante e salvando sua própria alma. Somente um coração empedernido refreia o choro e a união. Entre os sufis, existe um ditado, ou melhor, uma oração que pede a Deus que nos magoe: “Dilacere meu coração para que se crie um novo espaço para o Amor Infinito.”
O sentimento íntimo de carinho que leva o pescador a desenredar a Mulher-Esqueleto também lhe permite sentir outros anseios esquecidos, fazer renascer sua compaixão por si mesmo. Como ele está num estado de inocência, ou seja, como imagina tudo ser possível, ele não tem medo de pronunciar os desejos de sua alma.
Ele não tem medo de desejar, porque acredita que sua necessidade será satisfeita. É para ele um imenso alívio acreditar que sua alma se realizará. Quando o pescador chora seu sentimento verdadeiro, a reunião com a natureza da vida-morte-vida é propiciada.
A lágrima do pescador atrai para ele a Mulher-Esqueleto. Faz com que ela sinta sede. Faz com que ela deseje participar mais da sua vida. Como nos contos de fadas, as lágrimas atraem as coisas para nós, elas consertam tudo, elas fornecem a peça ou o pedaço que faltava. Na história africana, “Cachoeiras douradas”, um mago protege uma menina escrava fugida, chorando tanto que suas lágrimas criam uma cachoeira, atrás da qual a menina se refugia. Em outra história africana, “O chocalhar dos ossos”, as almas de curandeiros mortos são invocadas ao se aspergir a terra com lágrimas de crianças. Somos relembrados insistentemente do poder desse enorme sentimento. Nas lágrimas há um poder de atração e, dentro da própria lágrima, imagens poderosas que nos orientam. As lágrimas não só representam o sentimento, mas são também lentes através das quais adquirimos uma visão alternativa.
Na história, o pescador está deixando que seu coração se parta — não que se parta em pedaços, mas para se abrir. O que ele quer não é o amor da teta, da mãe de leite; não é o amor pela fortuna, nem o amor pelo poder, pela fama ou pela sexualidade. É um amor que lhe acontece, um amor que ele sempre trouxe dentro de si, mas que nunca reconheceu antes.
A alma do homem se estabelece em maior profundidade e nitidez à medida que ele capta esse relacionamento. A lágrima vem. Ela bebe. Agora uma outra coisa vai se desenvolver e renascer dentro dele, algo que ele pode dar a ela: um coração imenso, vasto, oceânico.
Mulheres Que Correm Com Lobos, por Clarissa Pínkola Estés
Foto: RishiB
Olá Flavia!
Muito especial seu trabalho e sua dedicação em compartilhar conhecimentos tão preciosos e que me sucitaram a seguinte questão, nem sei se tem relevância aí, mas – e quando o laço, a energia entre duas pessoas é ruim, quando há um desejo negativo de um ser ao outro mantendo esse laço?
Oi Valéria!
Muito obrigada pela visita e pelo comentário! Sinta-se sempre bem vinda aqui, viu?
Bem, querida, eu acredito que este Post do livro AS 7 ETapas de Uma Transformação Consciente possa te ajudar air buscando essas respostas:
http://meumelhormododeser.com.br/2011/10/27/o-que-vai-volta/#more-3574
É um dos livros que estamos estudando e que acho muito profundo, honesto e revelador.
Se vc precisar de mais informações, eu posso te enviar o livro por email, ok?
Beijos e obrigada!