As fases posteriores do amor: O coração como tambor e o canto para criar a vida

Diz-se que o couro ou a estrutura de um tambor determina quem e o que será conjurado a viver. Acredita-se que alguns tambores são do tipo viajante, pois  transportam quem toca e quem ouve (também chamados de “passageiros” na tradição da literatura oral) para lugares diversos e variados. Outros tipos de tambores são poderosos sob outros aspectos.

Tambores feitos de ossos humanos invocam os mortos. Tambores feitos com o couro de certos animais são bons para conclamar os espíritos de animais. Os tambores que são especialmente belos chamam a Beleza. Os  tambores com sininhos presos atraem os espíritos de crianças e afeiam o tempo. Os tambores que têm voz grave convocam os espíritos que conseguem ouvir esse tom. Os que têm voz aguda chamam os espíritos que ouvem aquele tom, e assim por diante.
Um tambor feito do coração invocará os espíritos que estão ligados ao coração humano. O coração simboliza a essência. O coração é um dos poucos órgãos essenciais à vida dos seres humanos (e dos animais). Retire-se um rim, e o ser humano sobrevive. Retire-se, ainda, as duas pernas, a vesícula, um pulmão, um braço e o baço; o ser humano vive, talvez não muito bem, mas continua com vida.
Eliminem-se certas funções cerebrais, e o ser humano ainda vive. Retire-se o coração, e a pessoa se vai no mesmo instante.
O centro fisiológico e psicológico é o coração. Nos Tantras do hinduísmo, que são instruções dos deuses aos seres humanos, o coração é o Anãhata chakra, o centro nervoso que abrange o sentimento por outro ser humano, o sentimento por si mesmo, pela terra e por Deus. É  o coração que nos permite amar como ama uma criança: totalmente, sem reservas e sem qualquer capa de sarcasmo, depreciação ou protecionismo.
Quando a Mulher-Esqueleto se vale do coração do pescador, ela está usando o centro motor da psique inteira, o único órgão de real importância, o único capaz de gerar sentimento puro e inocente. Diz-se que é a mente que pensa e cria. Essa história afirma o contrário, que é o coração que pensa e convoca as moléculas, átomos, sentimentos, anseios e o que mais seja necessário, até um único lugar a fim de gerar a matéria que realize a criação da Mulher- Esqueleto.
A história contém uma promessa: permita que a Mulher-Esqueleto se torne mais palpável na sua vida, e ela em troca engrandecerá sua vida. Quando a libertamos do seu  estado emaranhado e confuso e a percebemos como mestra e amante, ela passa a ser uma aliada e uma parceira.
Dar o coração para uma nova criação, para uma nova vida, para as forças da vida-morte-vida, é uma descida ao reino dos sentimentos. Pode ser difícil para nós, especialmente se tivermos sido feridos por uma decepção ou pela mágoa. No entanto, ele existe para ser tocado, para dar vida plena à Mulher-Esqueleto, para nos aproximar daquela que sempre esteve por perto.
Quando um homem entrega seu coração por inteiro, ele se torna uma força espantosa — ele se toma uma inspiração, papel que no passado era reservado apenas às mulheres. Quando a Mulher-Esqueleto dorme com ele, ele se torna fértil. Ele é investido com poderes femininos num meio masculino. Ele passa a levar as sementes da nova vida e das mortes necessárias. Ele inspira novos trabalhos a si mesmo, mas também àqueles que estão por perto.
Com o passar dos anos, percebi isso nos outros e vivenciei em mim mesma. É uma ocasião profunda quando criamos alguma coisa de valor através da crença que o parceiro tem em nós, através do sentimento sincero que ele tem pelo nosso trabalho, nosso projeto, nosso tema. E um fenômeno surpreendente. E não se limita necessariamente aos relacionamentos amorosos; ele pode ocorrer com qualquer um que nos entregue o coração intensamente.
Portanto, o vínculo do homem com a natureza da vida-morte-vida acabará lhe dando idéias às dúzias, bem como enredos, situações, partituras musicais e cores e  imagens inigualáveis  — pois a natureza da vida-morte-vida, o arquétipo da Mulher Selvagem, tem à sua disposição tudo o que um dia existiu e tudo o que um dia existirá. Quando ela cria, quando canta gerando carne para si mesma, a pessoa cujo coração ela está usando sente o que está acontecendo, enche-se com a criação, transborda com ela.
A história também ilustra um duplo poder que vem da psique através dos símbolos do tambor e do canto. Nas mitologias, as canções curam ferimentos e são usadas para atrair a caça. As pessoas são convocadas quando se entoam seus nomes. Alivia-se a dor; alentos mágicos restauram o corpo. Os mortos são invocados ou ressuscitados por meio do canto.
Diz-se que toda criação foi acompanhada de um som ou de uma palavra proferida em voz alta, de som ou palavra sussurrada ou pronunciada sem voz. Quem emite esse tipo de “palavra sonora” pode ter tido conhecimento ou compreensão do seu significado ou não. Considera-se que o canto brota de uma fonte misteriosa, que anima toda a criação, todos os animais, seres humanos, árvores, plantas e tudo o que o ouvir. Na literatura oral, diz-se que tudo que tem “seiva” tem canto.
O hino da criação produz a transformação psíquica. A tradição deles é enorme: há canções propiciadoras do amor na Islândia e entre os povos wichita e micmac. Na Irlanda, o poder mágico é invocado pelo canto mágico. Numa história da Islândia, uma pessoa cai em penhascos gelados e tem um membro decepado, mas ele é recuperado por meio de uma canção.
Em quase todas as culturas, no momento da criação os deuses dão canções ao seu povo, dizendo-lhes que seu uso irá chamar os deuses de volta a qualquer instante, que a canção irá lhes trazer o que precisarem e transformar ou eliminar o que não quiserem mais. Nesse sentido, a doação da música é um ato compassivo que permite aos humanos convocar os deuses e as grandes forças até os círculos humanos. A música é um tipo especial de linguagem que realiza essa função de um jeito impossível para a voz falada.
A música, como o tambor, cria uma consciência diferente, um estado de transe, de oração. Todos os seres humanos e muitos animais são suscetíveis a terem sua consciência alterada pelo som. Certos sons, como o de uma torneira pingando ou de uma buzina de automóvel, podem nos deixar ansiosos, até mesmo irritados.
Outros sons, como o bramido do oceano ou o ruído do vento nas árvores, nos enchem de uma sensação agradável. O som de baques surdos — como o de pegadas — faz com
que a cobra sinta uma tensão negativa. Já uma canção entoada suavemente pode fazer com que a cobra dance.
A palavra pneuma (respiração) compartilha suas origens com o termo  psique. As duas são consideradas palavras para a alma. Portanto, quando há uma canção numa história ou numa lenda, sabemos que os deuses estão sendo conjurados a instilar sua sabedoria e seu poder no caso em questão. Sabemos, então, que as forças estão funcionando no mundo espiritual, que estão ocupadas confeccionando almas.
Portanto, a canção entoada e o uso do coração como tambor são atos místicos para despertar camadas da psique não muito usadas ou vistas. A respiração ou pneuma que paira sobre nós abre certas fendas, faz surgir certas faculdades que de outro modo seriam inacessíveis. Não sabemos dizer para cada pessoa o que será invocado pelo canto, despertado pelo tambor, porque eles atuam  sobre frestas estranhas e raras no ser humano que participa. No entanto, podemos ter certeza de que seja o que for que acontecer terá uma irresistível força numinosa.

Mulheres Que Correm Com Lobos, por Clarissa Pínkola Estés.

Foto: Christian Ostrosky

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