A questão do exílio é antiqüíssima. Muitos contos de fadas e mitos têm como centro o tema do proscrito. Nesse tipo de relato, o personagem central é torturado por acontecimentos alheios à sua influência, muitas vezes tendo como origem um esquecimento fatal. Na história da Bela Adormecida, a décima terceira fada é esquecida e não é convidada para o batizado o que resulta numa maldição lançada contra a criança, que na realidade atinge a todos de um modo ou de outro. Por vezes, o exílio é imposto por pura malvadeza, como quando a madrasta envia a enteada pelo bosque escuro adentro em “Vasalisa, a sabida”.
Em outros casos o exílio é conseqüência de um erro ingênuo. O deus grego Hefaístos ficou ao lado da sua mãe, Hera, numa discussão com Zeus, seu marido. Zeus enfureceu-se e atirou Hefaístos do alto do Monte Olimpo, aleijando-o e banindo-o.
Às vezes o isolamento tem como origem algum pacto no qual se entra sem plena compreensão do que se trata, como na história de um homem que concorda em vagar como animal por um determinado número de anos a fim de ganhar uma quantidade de ouro, e mais tarde descobre que entregou a alma ao diabo disfarçado.
“O patinho feio” tem muitas versões, todas contendo o mesmo núcleo de significado; mas cada uma, cercada de diferentes enfeites e franjas que refletem o meio cultural da história bem como o talento poético de cada narrador.
Os significados básicos que nos interessam são os seguintes: o patinho da história simboliza a natureza selvagem, que, quando forçada a enfrentar circunstâncias pouco propícias, luta instintivamente para continuar viva apesar de tudo. A natureza selvagem sabe instintivamente agüentar e resistir, às vezes com elegância, às vezes sem muito estilo, mas resistindo assim mesmo. Graças a Deus por esse aspecto. Para a Mulher Selvagem, a continuidade é uma das suas maiores forças.
O outro aspecto importante da história é o de que, quando a vibração específica da alma de um indivíduo, que tem tanto uma identidade instintiva quanto uma espiritual, é cercada de aceitação e reconhecimento psíquico, a pessoa sente a vida e a força como nunca sentiu antes. Descobrir com certeza qual é a sua verdadeira família psíquica proporciona ao indivíduo a vitalidade e a sensação de pertencer a um todo.
Na história, as diversas criaturas da comunidade examinam o patinho “feio” e de um modo ou de outro o declaram inaceitável. Na realidade, ele não é feio. Só não combina com os outros. É tão diferente que parece um feijão preto num balde de ervilhas. A mãe pata a princípio tenta defender esse patinho que ela acredita pertencer à sua prole. Afinal, porém, ela fica profundamente dividida em termos emocionais e deixa de se importar com o filhote estranho.
Seus irmãos e outros membros da comunidade atacam-no, bicam-no e o atormentam. Sua intenção é a de fazer com que ele fuja. E o patinho feio sente um aperto no coração, por ser rejeitado por sua própria gente. Isso é terrível, especialmente levando-se em consideração que ele na realidade não fez nada que justificasse esse tratamento a não ser ter a aparência diferente e agir um pouco diferente dos outros. Para dizer a verdade, temos nesse caso, antes mesmo que a criatura chegue à adolescência, um patinho com um enorme complexo psicológico.
As meninas que demonstram ter uma forte natureza instintiva muitas vezes passam por sofrimentos significativos no início da vida. Desde a época em que são bebês, são mantida presas, domesticadas, e ouvem dizer que são inconveniente ou teimosas. Suas naturezas selvagens revelam-se bem cedo. Elas são curiosas, habilidosas e possuem excentricidades leve de vários tipos, características estas que, se desenvolvidas, constituiriam a base para sua criatividade para o resto das suas vidas. Considerando-se que a vida criativa é o alimento e a água para a alma, esse desenvolvimento básico é de importância de dolorosamente crítica.
Geralmente, o isolamento precoce começa sem que seja por nenhuma culpa da criança e é exacerbado pela incompreensão, pela crueldade da ignorância ou pela perversidade proposital dos outros. Nesse caso, o self básico da psique é ferido desde cedo. Quando isso acontece, a menina começa a acreditar que as imagens negativas dela mesma, refletidas pela família e pela cultura em que vive, são não só totalmente verdadeiras mas também totalmente isentas de preconceito, de influência da opinião e de preferências pessoais. A menina começa a acreditar que ela é fraca, feia, inaceitável, e que isso continuará a ser verdade não importa o esforço que ela faça para reverter a situação.
A menina é rejeitada pelo mesmos motivos que vemos na história do patinho feio. Em muitas culturas, existe uma expectativa, quando nasce uma filha, de que ela é ou será um certo tipo de pessoa, que aja de um certo modo consagrado pelo tempo, que siga um certo conjunto de valores que, se não forem idênticos aos da família, pelo menos se baseiem nos valores da família, e que seja como for não abale os alicerces.
Essas expectativas têm definições muito estritas quando um dos pais, ou ambos, sofrem do desejo de ter um “anjo de filha”, a criança “perfeita” e obediente.
Na fantasia dos pais, qualquer dos filhos que tenham será perfeito e refletirá apenas o jeito de ser dos pais. Se a criança for rebelde, ela pode, infelizmente, ser alvo de repetidas tentativas dos pais no sentido de realizar uma cirurgia psíquica, pois eles estarão tentando remodelar a criança e, mais do que isso, alterar o que a alma da criança exige dela mesma. Embora sua alma exija ver, a cultura ao seu redor exige a cegueira. Embora sua alma deseje exprimir sua verdade, ela é forçada ao silêncio.
Nem a alma da criança, nem sua psique, podem aceitar essa situação. A pressão no sentido de se “adequar”, seja qual for a definição que a autoridade dê ao padrão, pode perseguir a criança até que ela fuja para longe, para um mundo oculto ou para vaguear muito tempo à procura de um lugar para se abrigar e viver em paz.
Quando a cultura define detalhadamente no que consiste o sucesso ou a perfeição desejável sob qualquer aspecto — na aparência, na altura, na força, na forma física, no poder aquisitivo, na economia, na masculinidade, na feminilidade, na atitude de bom filho, no bom comportamento, na crença religiosa — existem ditames correspondentes e tendência à avaliação na psique de todos os seus membros. Portanto, as questões da Mulher Selvagem rejeitada geralmente são duplas: a íntima e pessoal, e a externa e cultural.
Cuidemos aqui das questões íntimas da pessoa rejeitada, pois quando desenvolvemos uma força adequada — não uma força perfeita, mas uma força moderada e prática — para sermos nós mesmas e para descobrir a que grupo pertencemos, podemos então influenciar a comunidade exterior e a consciência cultural com perícia. O que é uma força moderada? Ela é a que temos quando nossa mãe interior não está cem por cento confiante acerca do que fazer em seguida. Uma confiança de setenta e cinco por cento já serve. Setenta e cinco por cento! É uma boa proporção. Lembre-se, dizemos que uma planta está em flor, quer os botões estejam meio abertos, abertos até três quartos, quer estejam totalmente abertos.
Mulheres Que Correm Com Lobos, por Clarissa Pínkola Estés.
Foto: Vermin Inc