Com os anos da minha experiência clínica, ficou claro que essa questão do sentir-se integrado às vezes precisa ser considerada de uma perspectiva mais leve, pois a leveza pode ajudar a eliminar parte da dor de uma mulher. Comecei, então, a contar às minhas clientes essa história inventada chamada “O zigoto errado”, com o principal objetivo de ajudá-las a examinar sua qualidade de “diferente” com uma imagem mais revitalizante. A história é como se segue.
Alguma vez você já se perguntou como conseguiu aparecer numa família tão estranha quanto a sua? Se você passou a vida se sentindo estrangeiro, como uma pessoa ligeiramente estranha ou diferente, se você é um ser solitário, que vive às margens da corrente dominante, você sem dúvida sofreu. No entanto, chega também a hora de remar para longe disso tudo, de experimentar um panorama diferente, de migrar de volta à terra da sua própria gente. Que não haja mais sofrimento, que não haja mais tentativas de descobrir em que você errou. O mistério da razão pela qual você nasceu na família em que tenha nascido acabou, finis, está encerrado. Descanse por um instante na proa, refrescando-se no vento que vem da sua verdadeira terra natal.
Durante anos a fio, as mulheres que carregam em si a vida mística do arquétipo da Mulher Selvagem queixaram-se em silêncio: “Por que sou tão diferente? Por que nasci numa família tão estranha [ou insensível]?” Onde quer que suas vidas pretendessem se expandir, havia sempre alguém a espalhar sal na terra para que nada ali crescesse. Elas se sentiam torturadas por todas as proibições relativas aos seus desejos naturais. Se eram filhas da natureza, eram mantidas entre quatro paredes. Se eram cientistas, diziam-lhes que deviam ser mães. Se queriam ser mães, diziam-lhes que, então, era melhor que se adaptassem perfeitamente ao papel. Se queriam inventar algo, diziam-lhes que fossem práticas. Se tinham vontade de criar, diziam-lhes que o serviço doméstico nunca termina.
Às vezes, elas tentavam se adequar a qualquer padrão que estivesse na moda, sem perceber até bem mais tarde o que realmente queriam, como precisavam viver. E então, a fim de ter uma vida própria, elas passavam pelas dolorosas amputações de abandonar suas famílias, os casamentos que pelo juramento deveriam ser até a morte, os empregos que deveriam ser trampolins para algo mais neutralizante embora mais bem remunerado. Deixaram sonhos espalhados pela estrada inteira.
Com freqüência, as mulheres eram artistas que estavam tentando ser sensatas ao dedicar oitenta por cento do seu tempo a algum trabalho que abortasse diariamente suas vidas criativas. Embora as situações sejam inúmeras, um aspecto permanece constante: desde muito cedo elas eram identificadas como “diferentes” com uma conotação negativa. Na realidade, eram pessoas apaixonadas, especiais, curiosas e em pleno uso de suas mentes instintivas.
Portanto, é claro que a resposta a “por que comigo, por que essa família, por que sou tão diferente”, é que não há resposta para esse tipo de pergunta. Mesmo assim, o ego precisa ruminar alguma coisa antes de se soltar, e proponho, de qualquer maneira, três respostas . (A analisanda pode escolher a que preferir, mas tem de escolher pelo menos uma. A maioria opta pela última, mas qualquer uma serve.)
Prepare-se. Ei-las.
Nascemos do jeito que nascemos e nas estranhas famílias a que pertencemos: 1) porque sim (quase ninguém acredita nessa), 2) o Self tem um planejamento, e nossos cérebros de ervilha são ínfimos demais para desvendá-lo (muitas consideram essa idéia atraente) ou 3) por causa da síndrome do zigoto errado (bem… é, pode ser… mas o que é isso afinal?).
Sua família a considera uma alienígena. Você tem penas, eles têm escamas. Sua idéia de diversão é a floresta, os ermos, a vida interior, a majestade da natureza. A idéia deles de diversão é dobrar toalhas direitinho. Se isso acontece com você na sua família, você está sendo vítima da síndrome do zigoto errado.
Sua família passa lentamente pelo tempo; você passa como o vento. Eles são barulhentos, você é delicada; ou eles são calados e você canta alto. Você sabe porque sabe; eles querem prova e uma dissertação de trezentas páginas. Sem a menor dúvida, trata-se da síndrome do zigoto errado.
Nunca ouviu falar nisso? Bem, foi assim, a fada dos zigotos estava sobrevoando sua cidade natal numa noite, e todos os zigotinhos na sua cesta pulavam e saltavam de alegria.
Na verdade, você estava destinada a pais que a teriam compreendido, mas a fada dos zigotos entrou numa zona de turbulência e, epa, você caiu da cesta na casa errada. Você caiu de cabeça para baixo bem numa família que não lhe estava destinada. Sua “verdadeira” família ficava uns cinco quilômetros mais adiante.
É por isso que você se apaixonou por uma família que não era a sua, e que morava a uns cinco quilômetros dali. Você sempre quis que o sr. e sra. Fulano-de-Tal fossem seus pais de verdade. É possível que eles fossem mesmo.
É por isso que você sapateia pelos corredores apesar de ter uma família que vive grudada na televisão. É por isso que seus pais ficam alarmados cada vez que você vem visitá-los ou telefona. Eles estão preocupados “com o que ela vai aprontar agora? Da última vez, ela nos deixou envergonhados, só Deus sabe o que vai fazer desta vez. Ai!” Eles cobrem os olhos quando você se aproxima, e não é por se ofuscarem com sua luz.
Tudo o que você quer é amor. Tudo o que eles querem é paz.
Os membros da sua família, por seus próprios motivos, em virtude das suas preferências, da sua inocência, de danos sofridos, da sua constituição, da sua doença mental ou ignorância cultivada, não são tão hábeis para serem espontâneos com o inconsciente, e é claro que sua visita invoca o arquétipo do trickster, o que agita as coisas. E assim, antes mesmo que vocês se sentem à mesa, ela já está dançando por ali louca para deixar cair um fio de cabelo no ensopado da família.
Apesar de não ser sua intenção irritar a família, eles ficarão irritados do mesmo jeito. Quando você aparece, tudo e todos parecem enlouquecer. É um sinal inequívoco dos zigotos errados na família o fato de os pais se sentirem ofendidos o tempo todo enquanto os filhos têm a impressão de que nunca vão conseguir fazer nada certo.
A família não-selvagem tem apenas um desejo, mas o zigoto errado jamais consegue vislumbrar qual seja ele e, se o conseguisse, seu cabelo se arrepiaria formando pontos de exclamação.
Prepare-se, vou lhe contar o grande segredo. Eis a coisa misteriosa e tremenda que eles realmente querem de você.
Os não-selvagens querem coerência.
Querem que você seja hoje exatamente a mesma que foi ontem. Querem que você não mude com o passar dos dias, mas que permaneça como no início dos tempos.
Pergunte à família se eles querem coerência, e eles darão uma resposta afirmativa. Em tudo? Não, eles dirão, somente naquilo que importa. Quaisquer que sejam as coisas que importam no sistema de valores deles, elas sempre serão inaceitáveis para a natureza selvagem das mulheres. Infelizmente, “aquilo que importa” para eles não combina com “aquilo que importa” para a criança selvagem.
A coerência nas atitudes é uma expressão impossível para a Mulher Selvagem, pois sua força está na sua capacidade de adaptação à mudança, na sua inovação, na dança, nos uivos, nos rosnados, na sua vida instintiva profunda, na sua chama criadora. Ela não revela coerência pela uniformidade mas, sim, pela vida criativa, pela percepção, pela rápida captação de imagens, pela flexibilidade e destreza coerentes.
Se tivéssemos de identificar um aspecto que faz da Mulher Selvagem o que ela é, seria sua capacidade de resposta. A palavra resposta vem do termo latino “prometer, garantir” — e esse é o seu forte. Suas respostas cheias de percepção e habilidade são uma promessa e garantia coerentes para com as forças criadoras, sejam elas duendes, o diabrete que se esconde por trás da paixão, sejam elas a beleza, a arte, a dança ou a vida. A promessa que ela nos faz, se não a contrariarmos, é que ela nos fará viver. Ela nos fará viver plenamente, com sensibilidade e coerência.
Dessa forma, o zigoto errado dá sua fidelidade, não à família, mas ao seu Self interior. É por isso que ela se sente dividida. Sua mãe loba está segurando seu rabo; sua família concreta prendeu seus braços. Não demora muito, e ela está gritando de dor, rosnando e mordendo a si mesma e aos outros, para afinal ficar numa calma mortal. Quando se olha nos seus olhos, vêem-se ojos del cielo, olhos vazios, os de uma pessoa que não está mais ali.
Embora a socialização para as crianças seja importante, matar a criatura interior é matar a criança. Os habitantes da África Ocidental consideram que ser duro com uma criança faz com que a alma se afaste do corpo, às vezes só alguns metros, outras vezes a distância de alguns dias de caminhada.
Apesar de as necessidades da alma da criança deverem ser equilibradas com sua necessidade de segurança e cuidados físicos, bem como com noções cuidadosamente examinadas do “comportamento civilizado”, sempre me preocupo com aquelas que são bem-comportadas demais. Elas muitas vezes têm aquela expressão de “alma fraca” nos olhos. Alguma coisa não está certa. Uma alma saudável aparece brilhante por trás da persona a maior parte dos dias, e nos outros arde como chama. Quando o dano é sério, a alma foge.
Às vezes, ela sai vagueando ou correndo assustada e vai tão longe que são necessários agrados magistrais para fazer com que volte. Muito tempo deverá se passar antes que uma alma dessas sinta confiança suficiente para voltar, mas a tarefa não é impossível. Um resgate desses exige alguns ingredientes: uma honestidade aberta, energia, ternura, carinho, um exame da raiva e humor. Combinados, esses elementos compõem uma canção que chama a alma de volta para casa.
Quais são as necessidades da alma? Elas residem nos dois reinos da natureza e da criatividade. Nesses reinos, vive Na’ash-jé’ii Asdzáá, a Mulher-aranha, a deusa da criação do povo navajo que dá proteção psíquica a quem a procura. Ela se encarrega de ensinar à alma tanto a proteção quanto o amor à beleza.
As necessidades da alma são encontradas no abrigo das três velhas (ou jovens, dependendo do dia) irmãs — Cloto, Láquesis e Atropos — que tecem o fio vermelho, ou seja, a paixão, da vida da mulher. Elas tecem as idades da vida da mulher, dando nós à medida que uma idade se completa e a próxima se inicia. Elas se encontram nos bosques dos espíritos das caçadoras, Diana e Ártemis, duas mulheres-lobas que representam a capacidade de caçar, farejar e resgatar aspectos da psique.
As necessidades da alma são governadas por Coatlique, a deusa asteca da auto-suficiência feminina, que dá à luz de cócoras, direto nos pés. Ela dá lições sobre a vida da mulher solitária. Ela é uma fazedora de bebês, o que significa novos potenciais de vida, mas é também uma mãe da morte que usa caveiras na saia. Quando ela anda, elas dão a impressão do chocalho de uma cascavel, pois são chocalhos de caveiras. E, como os chocalhos de caveiras têm o som da chuva, por meios da ressonância simpática, eles atraem a chuva para a terra. Ela é a protetora de todas as mulheres solitárias e daquelas que são tão mágicas, tão cheias de idéias e pensamentos poderosos, que precisam viver no limiar do fim do mundo para não deslumbrar demais a comunidade. Coatlique é a protetora especial da mulher exilada.
Qual é o alimento básico para a alma? Bem, ele difere de uma criatura para outra. Seguem-se, porém, algumas combinações. Considerem-nas uma macrobiótica psíquica. Para algumas mulheres, o ar, a noite, o sol e as árvores são necessidades vitais. Para outras, somente as palavras, o papel e os livros conseguem saciá-las. Para ainda outras, a cor, a forma, a sombra e o barro são requisitos absolutos. Algumas mulheres precisam saltar, inclinar-se, correr, pois suas almas amam a dança. Ainda outras só querem a paz de se recostar numa árvore.
Há mais uma questão a tratar. Os zigotos errados aprendem a sobreviver. É difícil passar anos a fio na companhia de quem não pode nos ajudar a florescer. Ser capaz de dizer que sobrevivemos é um feito. Para muitas, o poder está na própria palavra. No entanto, chega uma hora no processo de formação da identidade em que a ameaça, ou o trauma, já faz parte do passado. É então que se passa ao próximo estágio da sobrevivência, à cura e ao desenvolvimento futuro.
Se permanecermos no estágio de sobreviventes sem avançar para o desenvolvimento, estaremos nos limitando, reduzindo nossa energia para nós mesmas e nosso poder no mundo a menos da metade. Uma mulher pode sentir tanto orgulho de ter sobrevivido que esse sentimento prejudique seu desenvolvimento criativo futuro. Às vezes, as pessoas têm medo de prosseguir além do status de sobrevivente, pois é exatamente isso o que ele é — um status, um marco de distinção, uma realização “pura e simples, pode apostar, pode acreditar”.
Em vez de tornar a sobrevivência a peça principal da nossa vida, é melhor usá-la como uma entre muitas insígnias, mas não como a única. Os seres humanos merecem andar cobertos de belas recordações, medalhas e condecorações por terem vivido, vivido mesmo e saído vitoriosos. Uma vez passada a ameaça, existe uma armadilha potencial se nos chamarmos por nomes adquiridos durante os tempos mais terríveis das nossas vidas. Essa atitude cria uma disposição mental que pode ser limitadora. Não é bom basear a identidade da alma exclusivamente nos feitos, nas derrotas e nas vitórias dos tempos difíceis. Embora a sobrevivência possa deixar a mulher dura como carne de pescoço, em algum ponto ela começa a inibir o desenvolvimento futuro.
Quando a mulher insiste em repetir que é uma “sobrevivente”, quando já se passou o tempo em que isso seria útil, o trabalho adiante de nós é óbvio. Devemos fazer com que a pessoa solte das mãos o arquétipo do sobrevivente. Se não o fizermos, nada mais poderá crescer. Faço a comparação dessa atitude com uma pequena planta resistente que conseguiu — sem água, sem sol, sem nutrientes — produzir uma corajosa e ínfima folhinha. Apesar das circunstâncias. No entanto, vicejar significa que, agora que passou o tema pó das vacas magras, vamos nos colocar em situações de exuberância, de luz e de nutrição para ali prosperar, vicejar com flores e folhas densas, pesadas, emaranhadas. É melhor que nos demos nomes que nos desafiem a crescer como criaturas livres. Isso é vicejar. É isso o que nos foi destinado.
O ritual é um dos meios pelos quais os seres humanos colocam suas vidas em perspectiva, quer se trate do Purim, do Advento, quer se trate de puxar a lua para baixo. Os rituais reúnem as sombras e espectros das vidas das pessoas, como que os organizam e os fazem repousar. Há uma imagem especial das comemorações de El Dia de los Muertos que se aplicam a ajudar as mulheres na transição da sobrevivência para o desenvolvimento futuro. Baseia-se no rito das ofrendas, que são altares para aqueles que passam desta vida. Ofrendas são tributos, memoriais e expressões da mais profunda consideração pelos entes amados não mais presentes neste plano. Descobri ser útil para muitas mulheres o ato de fazer uma ofrenda à criança que elas um dia foram, à guisa de reconhecimento do heroísmo da criança.
Algumas mulheres escolhem objetos, escritos, roupas, brinquedos, recordações de acontecimentos e outros símbolos da infância que serão incluídos. Elas arrumam a ofrenda ao seu próprio modo, contam a história que acompanha ou não e depois deixam aquilo arrumado enquanto quiserem. É a comprovação de seu passado de dificuldades, de garra e de triunfo sobre a adversidade.
Essa maneira de olhar o passado surte alguns efeitos: ela proporciona perspectiva, uma interpretação compassiva dos tempos passados, ao exibir aquilo que a pessoa vivenciou, o que foi feito daquilo, o que é admirável. É o fato de admirar o feito, em vez de vivê-lo, que libera a pessoa.
Continuar a ser a criança sobrevivente depois da hora para tal representa um excesso de identificação com um arquétipo danificado. Perceber o dano, e mesmo assim registrá-lo na memória, permite que se passe ao desenvolvimento futuro.
Vicejar é o nosso destino na terra. Vicejar, não apenas sobreviver, é o nosso direito inato na qualidade de mulheres.
Não se encolha nem recue se for chamada de ovelha negra, de indisciplinada, de loba solitária. Quem tem a visão lenta diz que o rebelde é uma praga para a sociedade. No entanto, ficou provado com o passar dos séculos que ser diferente significa estar no limite, significa ser praticamente garantido que essa pessoa vá fazer uma contribuição original, uma contribuição útil e espantosa à sua cultura.
Ao procurar conselhos, jamais dê ouvidos aos tímidos de coração. Seja gentil com eles, cumule-os de bênçãos, tente incentivá-los, mas nunca siga seus conselhos.
Se você alguma vez foi chamada de desafiadora, incorrigível, saliente, esperta, insubmissa, indisciplinada, rebelde, você está no caminho certo. A Mulher Selvagem
está por perto.
Se você n unca foi chamada de nada disso, ainda é tempo. Ponha em prática sua Mulher Selvagem. Ándele! Insista.
Mulheres Que Correm Com Lobos, por Clarissa Pínkola Estés.
Foto: Mubina H