Existem muitos mitos e contos de fadas que descrevem a fragilidade e a natureza selvagem do corpo. Temos o grego Hefesto, o manco que trabalhava os metais preciosos, o mexicano Hartar, que tinha dois corpos, a Vênus nascida do mar, o pequeno alfaiate, que era feio mas que podia gerar vida nova, as mulheres da Montanha dos Gigantes, que são cortejadas por sua força, Thumbelina, que consegue viajar de um lado para o outro com o auxílio da mágica e muitos outros.
Nos contos de fadas, determinados objetos mágicos têm capacidades sensoriais e de transporte que são hábeis metáforas do corpo, como a nuvem, a folha e o tapete mágico, Às vezes, mantos, sapatos, escudos, chapéus e elmos proporcionam o poder da invisibilidade, de uma força superior, da vidência e assim por diante. São como uma parentela arquetípica. Cada um permite ao corpo físico dispor de um aprofundamento do insight, da audição, do vôo ou de algum tipo de proteção tanto para a psique quanto para a alma.
Antes da invenção de carruagens, coches e bigas, antes da domesticação de animais para tração e montaria, aparentemente a imagem que representava o corpo sagrado era a do objeto mágico. Peças do vestuário, amuletos, talismãs e outros objetos, quando participantes de algum tipo de relação, transportavam a pessoa para o outro lado do rio ou do mundo.
O tapete mágico é um excelente símbolo do valor sensorial e psíquico do corpo natural e selvagem. Os contos de fadas em que aparece o motivo do tapete mágico imitam a atitude não-muito-consciente para com o corpo na nossa própria cultura. O tapete mágico é a princípio considerado completamente ordinário e sem grande valor. No entanto, para aqueles que se sentam na sua densa felpa e dizem “Suba!”, o tapete começa imediatamente a tremer, eleva-se do solo, paira um pouco e de repente, zum!Sai voando, transportando o passageiro para um lugar, um centro, um ponto de vista, um conhecimento diferente.O corpo, através de seus estados de excitação, percepção e de experiências sensoriais — como, por exemplo, ao ouvir música ou a voz da pessoa amada, ou ao sentir um certo perfume — tem a capacidade de nos transportar para outros lugares.
Nos contos de fadas, como nos mitos, o tapete representa um meio de locomoção, mas de um tipo determinado — do tipo que nos permite ver em profundidade o mundo assim como a vida em qualquer sentido. Nas histórias do Oriente Médio,ele é o veículo para o vôo espiritual dos xamãs. O corpo não é um objeto inerte com o qual lutamos para nos livrar. Visto da perspectiva correta, ele é um foguete, uma série de trevos atômicos, um emaranhado de cordões umbilicais neurológicos que nos ligam a outros mundos e outras experiências.
Além do tapete mágico, existem outros símbolos para o corpo. Uma história específica ilustra três deles, que me foi passada por Fahtah Kelly e se chama simplesmente “A história do tapete mágico”. Nela, um sultão manda três irmãos procurarem “o melhor objeto da terra”. Aquele dos três que trouxer o que for considerado o tesouro dos tesouros receberá todo um reino. Um dos irmãos procura e traz de volta uma varinha de condão de marfim, com a qual se pode examinar o que se desejar. Outro irmão traz uma maçã cujo perfume tem o poder de curar qualquer enfermidade. O terceiro irmão traz um tapete mágico que é capaz de transportar uma pessoa para qualquer lugar, bastando que ela pense nesse lugar.
O sultão pergunta o que é melhor. A capacidade para ver à distância? A capacidade para a cura e a recuperação? Ou a capacidade para o vôo espiritual?
Cada irmão por sua vez glorificou o objeto por ele encontrado. O sultão, no entanto, acaba por abanar a mão e proclamar que nenhum deles é melhor do que o outro, pois, sem um deles, os outros não têm nenhum valor. Com isso, o reino é dividido entre os três irmãos em partes iguais.
Essa história encerra imagens fortes que nos permitem vislumbrar no que consiste uma verdadeira animação do corpo. Essa história (assim como outras semelhantes) descreve o fabuloso potencial da intuição, do insight, da cura sensorial e do êxtase oculto no corpo. Costumamos pensar no corpo como esse “outro” que cumpre suas funções mais ou menos independente de nós e que, se o “tratarmos” bem, ele fará com que nos “sintamos bem”. Muitas pessoas tratam seu corpo como se ele fosse um escravo, ou talvez elas até o tratem bem mas exijam dele que satisfaça seus desejos e caprichos como se ele fosse um escravo do mesmo jeito.
Há quem diga que a alma anima o corpo. Porém, e se resolvêssemos imaginar por um instante que é o corpo que anima a alma, que a ajuda a se adaptar à vida concreta, que analisa e traduz, que fornece o papel em branco, a tinta e a pena com os quais a alma pode escrever nas nossas vidas? Suponhamos, como nos contos de fadas em que as coisas mudam de forma, que o corpo é um Deus por si só, um mestre, um mentor, um guia autorizado. E daí? Seria prudente passar a vida inteira torturando esse mestre que tem tanto a dar e a ensinar? Desejamos passar a vida inteira permitindo que os outros depreciem nossos corpos, julguem-nos, considerem-nos defeituosos? Será que temos força suficiente para renegar o pensamento geral e prestar atenção, com profundidade e sinceridade, ao nosso corpo como um ente poderoso e sagrado?
Está errada a imagem vigente na nossa cultura do corpo exclusivamente como escultura. O corpo não é de mármore. Não é essa a sua finalidade. A sua finalidade é a de proteger, conter, apoiar e atiçar o espírito e alma em seu interior, a de ser um repositório para as recordações, a de nos encher de sensações — ou seja, o supremo alimento da psique; é a finalidade de nos elevar e de nos impulsionar, de nos impregnar de sensações para provar que existimos, que estamos aqui, para nos dar uma ligação com a terra, para nos dar volume, peso. É errado pensar no corpo como um lugar que abandonamos para alçar vôo até o espírito. O corpo é o detonador dessas experiências. Sem o corpo não haveria a sensação de entrada em algo novo, de elevação, altura, leveza. Tudo isso provém do corpo. Ele é o lançador de foguetes. Na sua cápsula, a alma espia lá fora a misteriosa noite estrelada e se deslumbra.
Mulheres Que Correm Com Lobos, por Clarissa Pínkola Estés.
Foto: Afroboof