Não é a alegria da vida que mata o espírito da menina na história dos sapatinhos vermelhos; é a sua falta. Quando a mulher não tem consciência da própria privação, das conseqüências do uso de veículos e substâncias mortíferas, ela está dançando, dançando sem parar. Sejam eles o negativismo, os relacionamentos infelizes, as situações de exploração, sejam eles as drogas ou o álcool — eles são como os sapatos vermelhos; é dificílimo livrar a pessoa deles depois que eles se instalaram.
Nessa dependência compensatória dos excessos, a velha senhora da psique desempenha um papel importantíssimo. Ela foi cega como ela só. Agora adoece. Fica imóvel, deixando um perfeito vazio na psique. Agora não há mais ninguém para dar uns conselhos à psique desvairada. A velha senhora acaba morrendo mesmo, não deixando absolutamente nenhum local seguro na psique. E a menina dança. A princípio, ela vira os olhos de êxtase mas, logo, quando os sapatos a deixam exausta de tanto dançar, seus olhos viram de horror.
Dentro da psique selvagem estão os instintos de sobrevivência mais ferozes de cada mulher. No entanto, a menos que ela pratique sua liberdade interna e externa com regularidade, a submissão, a passividade e o tempo passado no cativeiro embotam seus dons inatos de visão, de percepção, confiança e outros, aqueles de que ela precisa para ser independente.
A natureza instintiva nos diz quando basta. Ela é prudente e protege a vida. A mulher não pode compensar toda uma vida de traições e mágoas entregando-se a excessos de prazer, de raiva ou de rejeição. Espera-se que a velha senhora na psique marque o tempo, espera-se que ela diga quando. Nessa história, a velha senhora está liquidada, arrasada.
Para nós é às vezes difícil perceber quando estamos perdendo os nossos instintos, pois com muita freqüência trata-se de um processo insidioso que não se completa num único dia, mas que se estende por um longo período. Da mesma forma, a perda ou amortecimento do instinto é muitas vezes apoiada pelo ambiente cultural, e ocasionalmente até por outras mulheres que suportam a perda do instinto como um meio de corroborar o fato de pertencerem a uma cultura que não mantém um habitat propício à mulher natural.
A dependência começa quando a mulher perde sua vida feita à mão e cheia de significado e passa a ter uma fixação em resgatar de qualquer forma qualquer coisa que lembre essa vida. Na história, a menina insiste em tentar se reunir aos diabólicos sapatos vermelhos, muito embora eles cada vez mais a façam perder o controle. Ela perdeu seu poder de discriminação, sua capacidade de perceber a verdadeira natureza das coisas. Devido à perda da sua vitalidade original, ela se dispõe a aceitar um substituto fatal. Na psicologia analítica, diríamos que ela abdicou do Self.
A dependência e a ferocidade estão relacionadas. A maioria das mulheres esteve em cativeiro pelo menos por um curto período, e algumas por um tempo interminável. Algumas só foram livres in utero. Todas perdem parte do instinto durante esse período. Em algumas, fica prejudicado o instinto a respeito de quem é uma boa pessoa, e com freqüência essa mulher é induzida ao erro. Em outras, a capacidade de reagir à injustiça se vê radicalmente reduzida, e elas muitas vezes se transformam em mártires relutantes, prontas para a retaliação. Em outras ainda, o instinto de fugir ou enfrentar é enfraquecido, e elas se transformam em vítimas. A lista ainda continua. Por outro lado, a mulher em pleno uso de sua mente selvagem rejeita as convenções que não sejam propícias nem sensatas.
A dependência de substância química é uma verdadeira armadilha. As drogas e o álcool são muito parecidos com um amante violento que nos trata bem a princípio e depois nos espanca; pede desculpas, é gentil por algum tempo e de repente volta a nos espancar. A armadilha consiste em tentar ficar, levando em conta o lado bom, enquanto procuramos ignorar o lado negativo. Isso está errado. Nunca poderia funcionar.
Janis Joplin começou também a realizar os desejos selvagens de outras pessoas. Ela assumiu uma presença arquetípica que os outros não tinham coragem suficiente para assumir. Eles aplaudiam nela a rebeldia como se ela pudesse libertá-los sendo selvagem no lugar deles.
Janis fez mais uma tentativa de se adequar antes de começar seu longo mergulho no comportamento obsessivo. Ela se juntou às fileiras de outras mulheres vigorosas, porém feridas, que se descobriram funcionando como xamãs para as massas. Elas, também, ficaram exaustas e caíram dos céus. Frances Farmer, Billie Holiday, Anne Sexton, Sylvia Plath, Sara Teasdale, Judy Garland, Bessie Smith, Edith Piaf e Frida Kahlo — é triste que a vida das nossas figuras-modelos de mulheres selvagens e artísticas preferidas tenha terminado de forma trágica e prematura.
Uma mulher braba não tem força suficiente para assumir, no lugar de todo mundo, um arquétipo extremamente almejado sem entrar em colapso. A mulher braba está em processo de cura. Não costumamos pedir a um convalescente que carregue um piano escada acima. A mulher que está voltando precisa ter tempo para se fortalecer.
As pessoas que são apanhadas e levadas pelos sapatos vermelhos sempre começam pensando que qualquer substância da qual estejam dependentes representa uma forma ou outra de salvação. Às vezes isso lhes dá uma sensação de poder fantástico, ou uma falsa sensação de que têm energia para ficar acordadas a noite inteira, para criar até o amanhecer, para ficar sem comer. Ou talvez a dependência permita que elas durmam sem temer demônios internos, acalme seus nervos, ajude a que elas não se importem tanto com tudo aquilo com que tanto se importam ou, talvez, as ajude a não querer mais amar nem ser amada. No entanto, no final das contas, a dependência só cria, como vemos na história, uma paisagem borrada que gira com tal velocidade que no fundo não se está vivendo uma vida de verdade. A dependência é uma Baba Yaga enlouquecida que devora crianças perdidas e as deixa à porta do carrasco.
Mulheres Que Correm Com Lobos, por Clarissa Pínkola Estés
Foto: Arohasilhouettes