O homem solitário

Numa história semelhante a essa, é na realidade uma mulher humana que seduz um homem-baleia a copular com ela, tendo-lhe roubado sua nadadeira. Em outras versões de “Pele de foca, pele da alma”, a criança é às vezes  uma menina, às vezes um menino-peixe. Por vezes, a velha foca lá fora no mar é uma venerável fêmea.
Por haver tantas trocas de sexo nas versões da história, o fato de seus personagens serem masculinos ou femininos tem importância muito menor do que o processo condenado.

Nessa linha, consideremos que o homem solitário que rouba a pele de foca representa o Ego da psique da mulher. A saúde do Ego é muitas vezes determinada pela eficácia com a qual medimos as fronteiras do mundo concreto, pela firmeza com a qual nossa identidade foi formada, pela exatidão com que diferenciamos o passado, o presente e o futuro, bem como pelo nível de coincidência das nossas percepções com a realidade consensual. É um tema eterno na psique humana o de que o Ego e a alma lutem pelo controle da força da vida. No início da vida, o Ego, com seus apetites, é freqüentemente quem manda. Ele está sempre inventando alguma coisa que tem um cheirinho delicioso. O Ego tem muita força durante esse período. Ele relega a alma aos trabalhos mesquinhos da cozinha.
No entanto, em algum ponto, às vezes quando estamos com vinte anos, às vezes com trinta, com maior freqüência aos quarenta anos, muito embora algumas mulheres só estejam realmente prontas depois dos cinqüenta, dos sessenta ou mesmo dos setenta ou oitenta, começamos, afinal, a permitir que a alma assuma o comando.
O poder passa, então, dos detalhes e minúcias práticas para o envolvimento da alma. E apesar de a alma não assumir o controle com a eliminação do Ego, este último é destituído do  seu posto e designado para uma função diferente na psique, que consiste essencialmente em se submeter aos interesses da alma.
Desde o instante em que nascemos, há dentro de nós um impulso selvagem que deseja que nossa alma conduza nossa vida, pois o Ego é  limitado na sua capacidade de compreensão. Imaginemos o Ego preso a uma rédea permanente e relativamente curta; ele só consegue penetrar até certo ponto nos mistérios da vida e do espírito. Geralmente, ele fica assustado. Ele tem o mau hábito de reduzir toda a força espiritual a “isso ou aquilo”. Ele exige fatos que sejam observáveis. Provas que sejam de natureza mística ou das sensações raramente combinam bem com o Ego. É por isso que o Ego é solitário. Desse modo, ele fica muito limitado na sua imaginação. Ele não tem como participar plenamente dos processos mais misteriosos da alma e da psique. No entanto, o homem solitário anseia pela alma, vislumbrando vagamente o que é profundo e selvagem quando deles se aproxima.
Algumas pessoas empregam os termos alma e espírito como equivalentes. Nos contos de fadas, porém, a alma é sempre a pró-ginitora e a progenitora do espírito. Na hermenêutica dos arcanos, o espírito é um ser nascido da alma. O espírito herda a matéria, ou nela encarna, a fim de recolher notícias sobre os costumes do mundo para levá-las de volta para a alma. Quando não ocorre nenhuma intromissão, o relacionamento entre a alma e o espírito é de uma simetria perfeita. Cada um por sua vez enriquece o outro. Juntos, a alma e o espírito formam um ecossistema, como num lago no qual os animais do fundo nutrem os animais das camadas superiores enquanto estas últimas nutrem os animais do fundo.
Na psicologia junguiana, o Ego é freqüentemente descrito como uma pequena ilha de consciência flutuando no mar do  inconsciente. No folclore, porém, o Ego é retratado como uma criatura de apetites, muitas vezes simbolizado por um animal ou ser humano não muito brilhante cercado de forças que são mistificantes aos seus olhos e sobre as quais ele procura conquistar o controle. Às vezes, o Ego é capaz de ganhar o controle por meios brutais e destrutivos mas, no final, com o aperfeiçoamento do herói ou da heroína, é muito mais provável que ele fracasse em sua tentativa de reinar.
No início da nossa vida, o Ego sente curiosidade a respeito do mundo da alma, mas com enorme freqüência ele está interessado na satisfação dos próprios desejos. O Ego nasce em nós, a princípio como um potencial, e é moldado, trabalhado e preenchido com idéias, valores e deveres pelo mundo que nos cerca: nossos pais, nossos mestres, nossa cultura. E é assim que deveria ser, pois ele vai ser nosso acompanhante, nosso segurança e nossa sentinela avançada no mundo objetivo.
Entretanto, se não for permitido à natureza selvagem emanar pelo Ego, dando-lhe cor, sabor e capacidade de resposta instintiva, então, muito embora a cultura possa não aprovar o que foi criado nesse Ego, ela não aprova, não pode nem irá aprovar um tratamento tão incompleto da sua obra.
O homem solitário na história está tentando participar da vida da alma, mas, à semelhança do Ego, ele não foi talhado exatamente para ela e tenta agarrar a alma em vez de desenvolver um relacionamento com ela. Por que o Ego rouba a pele da foca?
Como qualquer outra criatura solitária ou faminta, ele adora a luz. Ele vê a luz e a possibilidade de ficar junto da alma, e se esgueira até ela, roubando-lhe uma das suas camuflagens essenciais. O Ego não pode se conter. Ele é o que é, atraído pela luz. Embora não consiga viver debaixo d’água, ele tem um anseio próprio por ter um relacionamento com a alma. O Ego é grosseiro em comparação com a alma. Seu modo de agir raramente é evocativo ou sensível. Mesmo assim, ele sente um anseio pequenino e vagamente compreendido pela beleza da luz. E isso, de certo modo e por algum tempo, o tranqüiliza.
Assim, faminto pela alma, nosso próprio Ego rouba a pele. “Fique comigo”, sussurra ele. “Vou fazê-la feliz, isolando-a do seu self profundo e dos ciclos de retorno ao lar da sua alma. Vou fazê-la muito, muito feliz. Por favor, por favor, fique.”
E então, como é correto que aconteça no início da formação da individuação feminina, a alma é forçada a entrar em relacionamento com o Ego. A função prática da subserviência da alma ao Ego ocorre para que nós conheçamos o mundo, para que aprendamos os meios de conseguir as coisas, como trabalhar, como diferenciar o que é bom do que não é tão bom assim, quando agir, quando ficar parada, como conviver com as pessoas, para que nos inteiremos da mecânica e das maquinações da cultura, para que saibamos manter um emprego, segurar um bebê no colo, cuidar do nosso próprio corpo, cuidar dos negócios… todos os aspectos da vida objetiva.
O objetivo inicial de desenvolver um constructo tão importante na psique da mulher, o do casamento da mulher-foca com o homem solitário, um casamento no qual ela é definitivamente submissa, consiste em criar um acordo temporário que acabará produzindo um filho espiritual com a capacidade de conviver no mundo prático e no mundo selvagem e de traduzir de um para o outro. Uma vez nascida essa criança, uma vez que ela esteja desenvolvida e iniciada, ela volta à tona no mundo objetivo, e o relacionamento com a alma é corrigido. Muito embora o homem solitário, o Ego, não possa dominar para sempre  — já que um dia ele precisará se submeter às exigências da alma pelo restante da vida da mulher — ao conviver com a mulher-foca/mulher-alma, ele foi tocado pela grandeza e fica, portanto, encantado, enriquecido e humilhado, tudo ao mesmo tempo.

Mulheres Que Correm Com Lobos, por Clarissa Pínkola Estés.

Foto: Yung GrassHoper

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