Vemos assim que a união dos opostos entre o ego e a alma produz algo de infinito valor, a criança espiritual. E é verdade que, mesmo quando o Ego invade os aspectos mais sutis da psique e da alma, está ocorrendo uma fecundação cruzada.
Paradoxalmente, ao roubar a proteção da alma e sua capacidade de desaparecer para dentro da água ao seu bel-prazer, o Ego participa da criação de um filho que terá direito a uma herança dupla, a do mundo e a da alma, um filho que será capaz de levar e trazer mensagens e presentes de um lado para o outro.
Em algumas das histórias mais notáveis, como por exemplo em “A bela e a fera” de origem gaélica, na mexicana “Bruja Milagra” e na japonesa “Tsukino Waguma: o urso do quarto-crescente”, descobrir o caminho de volta ao nosso correto estado psíquico começa com o ato de dar alimento ou cuidados a um homem, mulher ou animal solitário e/ou ferido. Um dos constantes milagres da psique está em que uma criança dessas, que terá a capacidade de percorrer dois mundos muito diferentes, possa se originar de uma mulher nesse estado de “falta de pele” e “casada” com algo em si mesmo ou no mundo objetivo tão solitário e pouco desenvolvido.
Ocorre algo dentro de nós quando estamos nesse tipo de estado, algo que produz um sentimento, uma ínfima vida nova, uma pequena chama que não se apaga em circunstâncias imperfeitas, árduas ou até mesmo desumanas.
Essa criança espiritual é la niña milagrosa, a criança milagrosa, que tem a capacidade de ouvir o chamado, ouvir a voz distante que avisa que chegou a hora de voltar, de voltar para o próprio self. A criança faz parte da nossa natureza medial que nos impele, porque ela ouve o chamado quando ele vem. É a criança que desperta, que se levanta da cama, que sai de dentro da casa para a noite cheia de vento e que desce até o mar revolto, que nos faz afirmar: “Deus é testemunha de que eu vou agir assim”, “Eu vou resistir”, “Nada me desviará” ou “Descobrirei uma forma de continuar”.
É a criança que devolve a pele de foca, a pele da alma, para a mãe. É a criança que lhe possibilita a volta ao lar. Essa criança é uma força espiritual que nos induz a continuar nossa obra importante, a recuar, a mudar nossa vida, a melhorar a comunidade, a nos unirmos para ajudar a dar equilíbrio ao mundo… tudo isso apenas ao voltar ao lar. Se quisermos participar de tudo isso, o difícil casamento entre a alma e o Ego precisa ser realizado, o filho espiritual precisa nascer. O resgate e o retorno são os objetivos a serem atingidos.
Independente das circunstâncias da mulher, a criança espiritual, a velha foca que surge do mar chamando sua filha para casa e o mar aberto estão sempre por perto. Sempre. Fui recentemente convidada para visitar o presídio federal de mulheres de Pleasanton, Califórnia, juntamente com um grupo de artistas/curandeiras, fazer apresentações e ensinar um grupo de cem mulheres que estavam profundamente envolvidas num programa de desenvolvimento espiritual.
Vi poucas mulheres “calejadas” ali. Pelo contrário, vi dezenas de mulheres em diversos estágios do processo da mulher-foca. Muitas haviam caído “prisioneiras” tanto em termos figurados quanto em termos literais em virtude de opções extremamente ingênuas. Quaisquer que fossem os motivos que as colocaram naquele lugar, apesar das condições de rigoroso confinamento, cada mulher a seu próprio modo estava nitidamente no processo de criar uma criança espiritual, moldada com carinho e dor da sua própria carne, dos seus próprios ossos. Cada mulher estava também procurando pela sua pele de foca. Cada uma estava mergulhada no processo de recordar o caminho de volta ao lar da alma.
Uma artista da nossa trupe, uma jovem violinista negra chamada Índia Cook, tocou para as mulheres. Estávamos ao ar livre, no pátio aberto. Estava muito frio, e o vento uivava em volta da tela de fundo do palco aberto. Índia passou o arco pelas cordas do seu violino elétrico e tocou num tom menor uma música de explodir o coração. Na verdade, seu violino chorava. Uma mulher grande, de origem lakota, bateu no meu braço e sussurrou com voz rouca: “Essa música… esse violino está abrindo alguma coisa em mim. Eu achava que estava trancada para sempre.” Seu rosto largo estava perplexo e etéreo. Meu próprio coração se partiu, mas no bom sentido, porque eu percebi que, independente do que lhe houvesse ocorrido, ela ainda conseguia ouvir o grito de lá do mar alto, o chamado do próprio lar.
Na história da “Pele de foca, pele da alma”, a mulher-foca conta ao filho histórias sobre o que vive e viceja debaixo d’água. Com suas histórias, ela instrui, forjando a criança nascida da sua união com o Ego. Ela está formando a criança, ensinando-lhe o terreno e os costumes dos “outros”. A alma está preparando o filho selvagem da psique para algo muito importante.
Mulheres Que Correm Com Lobos, por Clarissa Pínkola Estés.
Foto: Aelle