A maioria das depressões, tédios e confusões errantes da mulher é causada por uma severa restrição da vida da alma, na qual a inovação, o impulso e a criatividade são proibidos ou limitados. As mulheres recebem um enorme impulso para agir proveniente da força criadora. Não podemos ignorar o fato de ainda ocorrerem muitas apropriações e mutilações dos talentos das mulheres através das restrições culturais e do castigo aos seus instintos naturais e saudáveis.
Podemos nos libertar dessa condição se houver um rio subterrâneo ou até mesmo uma pequena corrente que escorra de algum lugar profundo da alma para dentro da nossa vida. Se, no entanto, a mulher “longe de casa” ceder toda a sua força, ela se transformará primeiro numa névoa, depois num vapor e afinal numa sombra do seu antigo self selvagem.
Toda essa apropriação e ocultação da pele natural da mulher e seu subseqüente definhamento e invalidez me fazem lembrar de uma velha história que meu falecido tio Vilmos uma vez contou para acalmar e esclarecer um adulto furioso da nossa grande família que estava sendo ríspido demais com uma criança. O tio Vilmos tinha uma ternura e uma paciência infinitas com seres humanos e animais.
Ele era um contador de histórias inato na tradição dos mesemondók, muito hábil ao aplicar histórias como um bálsamo suave.
=========================
Um homem veio a um szabó, alfaiate, para experimentar terno. Parado diante do espelho, ele percebeu que o colete estava um pouco irregular na parte inferior.
— Ora — disse o alfaiate. — Não se preocupe com isso. Basta você puxar a ponta mais curta para baixo com a mão esquerda, que ninguém jamais vai perceber nada.
Enquanto o cliente fazia exatamente isso, ele notou que a lapela do paletó estava com uma ponta enrolada em vez de estar rente.
— Isso? — perguntou o alfaiate. — Isso não é nada. É só você virar a cabeça um pouquinho e segurar a lapela no lugar com o queixo.
O freguês obedeceu e, quando o fez, observou que a costura de entrepernas estava meio curta e que o gancho lhe parecia um pouco apertado demais.
— Ora, nem pense nisso. Puxe o gancho para baixo com a mão direita, e tudo vai ficar perfeito. — O freguês concordou e comprou o terno.
No dia seguinte, o homem estreou o terno com todas as alterações de queixo e mãos. Enquanto ia mancando pelo parque com o queixo segurando a lapela no lugar, uma das mãe puxando o colete, e a outra mão agarrada ao gancho, dois velhos pararam de jogar damas para vê-lo passando com dificuldade.
— M’Isten, meu Deus! — disse o primeiro velho. — Veja aquele pobre aleijado.
O segundo homem refletiu por um instante antes de sussurrar.
— Igen, é, ele é bem aleijado mesmo, mas sabe o que eu queria saber… onde será que ele comprou um terno tão elegante?
============================
A atitude do segundo velho constitui uma reação cultural comum diante da mulher que desenvolveu uma persona impecável, mas que tem de se aleijar toda ao tentar mantê-la. Bem, é, ela está aleijada, mas veja como está elegante, veja como é boa, veja como está se saindo bem. Quando começamos a definhar, tentamos caminhar todas tortas para dar a impressão de que estamos cuidando de tudo, que tudo está bem e em perfeita ordem. Quer seja a pele da alma que nos falte, quer seja a pele criada pela cultura que nos sirva, ficamos aleijadas quando fingimos que nada disso ocorre. Quando agimos assim, a vida se encolhe e o preço que pagamos é muito alto.
Quando a mulher começa a ressecar, para ela toma-se cada vez mais difícil funcionar segundo sua entusiástica natureza selvagem. As idéias, a criatividade, a própria vida crescem melhor em condições de umidade. As mulheres em processo de ressecamento freqüentemente têm sonhos com o homem sinistro: ladrões, bandidos ou estupradores as ameaçam, fazem delas reféns, roubam e agem de modo ainda pior. Às vezes esses sonhos refletem traumas decorrentes de uma agressão real. No entanto, na maioria dos casos, eles são sonhos de mulheres que estão ressecando, que não estão dando a devida atenção ao lado instintivo da sua vida, que roubam de si mesmas, que excluem a função criadora e que às vezes não fazem nenhum movimento no sentido de se ajudar, ou podem até mesmo se esforçar com afinco para ignorar o chamado de volta à água.
Durante os anos de exercício da minha profissão, vi muitas mulheres nesse estado de ressecamento, algumas ligeiramente afetadas, outras mais. Ao mesmo tempo, ouvi dessas mulheres muitos sonhos com animais feridos, sendo que eles aumentaram drasticamente (tanto nas mulheres quanto nos homens) durante os últimos dez anos. É difícil não perceber que o aumento dos sonhos com animais feridos coincide com as devastações da natureza tanto internas quanto externas às pessoas.
Nesses sonhos, o animal — corça, lagarto, cavalo, urso, touro, baleia e outros — está aleijado, de uma forma muito parecida à do homem na história do alfaiate, de uma forma idêntica à da mulher-foca. Embora sonhos com animais feridos reflitam a condição da psique instintiva da mulher e seu relacionamento com a natureza selvagem, ao mesmo tempo esses sonhos também refletem profundas lacerações no inconsciente coletivo, relacionadas à perda da vida instintiva. Se a cultura proíbe às mulheres uma vida sã e íntegra, por quaisquer motivos que sejam, ela terá sonhos com animais feridos. Embora a psique envide todos os esforços para se purificar e se fortalecer regularmente, cada marca de agressão “lá fora” fica registrada no inconsciente “aqui dentro”, de tal forma que quem sonha sofre os efeitos da perda dos seus vínculos pessoais com a Mulher Selvagem bem como da perda de relacionamento do mundo com a sua natureza profunda.
Portanto, às vezes não é apenas a mulher que está definhando. Pode acontecer que aspectos essenciais do seu próprio meio ambiente — por exemplo, a família ou o ambiente de trabalho — ou do seu ambiente cultural mais amplo estejam também se crestando e se desfazendo em pó, e isso a afeta e a aflige. A fim de que ela possa contribuir para a correção dessas condições, é necessário que volte à sua própria pele, ao seu próprio bom senso instintivo e ao seu próprio lar.
Como vimos, é difícil reconhecer a nossa condição antes que nos tornemos como a mulher-foca na sua aflição: com a pele escamando, mancando, perdendo a seiva, ficando cega. Portanto, é uma bênção da imensa vitalidade da psique que exista no fundo do inconsciente alguém que chama, alguém de idade que suba à superfície da nossa consciência e comece a nos chamar incessantemente de volta à nossa verdadeira natureza.
Mulheres Que Correm Com Lobos, por Clarissa Pínkola Estés
Foto: CapCat Ragu