Baubo: a deusa do ventre

Há uma expressão muito forte que diz:  Dice entre las piernas, “ela fala do meio das pernas”. Essas pequenas histórias “do meio das pernas” são encontradas em todo o mundo. Uma delas é a história de Baubo, uma deusa da Grécia antiga, a chamada “deusa da obscenidade”. Ela tem nomes mais antigos, como por exemplo Iambe, e aparentemente os gregos a adotaram de culturas muito mais antigas.

Sempre houve deusas selvagens arquetípicas da sexualidade sagrada e da fertilidade da vida-morte-vida desde o início dos tempos.
Conhece-se apenas uma referência escrita a Baubo remanescente de tempos remotos, dando a nítida impressão de que seu culto foi destruído e soterrado pelas diversas conquistas. Tenho a forte sensação de que em algum ponto, talvez debaixo daqueles morros silvestres e lagos de florestas na Europa e no Oriente, existam templos dedicados a ela, templos lotados de artefatos e ícones de marfim.
Portanto, não é por acaso que poucos ouviram falar de Baubo mas, lembrem-se, precisamos apenas de um fragmento para reconstituir o todo. E temos esse fragmento, porque temos uma história em que Baubo aparece. Ela é uma das divindades mais adoráveis e picarescas que habitaram o Olimpo. Esta é a minha versão da cantadora, baseada num resquício selvático de Baubo que ainda cintila na mitologia grega pós-matriarcal e nos hinos homéricos.

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Deméter, a mãe-terra, tinha uma linda filha chamada Perséfone, que estava um dia brincando ao ar livre. Perséfone encontrou por acaso uma flor de rara beleza e estendeu os dedos para tocar seu lindo cálice. De repente, a terra começou a tremer e uma gigantesca fenda se abriu em ziguezague. Das profundezas da terra chegou Hades, o deus dos Infernos. Ele chegou alto e majestoso numa biga negra puxada por quatro cavalos da cor de fantasmas.
Hades apanhou Perséfone, levando-a para sua biga, em meio  a uma confusão de véus e sandálias. Ele guiou, então seus cavalos cada vez mais para dentro da terra.
Os gritos de Perséfone foram ficando cada vez mais fracos à medida que a fenda foi se fechando como se nada tivesse acontecido. Por toda a terra, abateu-se um silêncio e o perfume de flores esmagadas.
E a voz da donzela a gritar ecoou nas pedras das montanhas e borbulhou num lamento vindo do fundo do mar. Deméter ouviu os gritos das pedras. Ela ouviu, também, o choro das águas. Arrancou, então, a grinalda dos seus cabelos imortais, deixou cair de cada ombro seus véus escuros e saiu a sobrevoar a terra como uma ave enorme, procurando, chamando por sua filha.
Naquela noite, uma velha à frente de uma gruta comentou com suas irmãs que havia ouvido três gritos naquele dia um, o de uma voz jovem que gritava de pavor, um outro que implorava ajuda e um terceiro, o de uma mãe que chorava.
Não se via Perséfone em parte alguma. E assim começou a procura longa e enlouquecida de Deméter por sua filha querida. Deméter esbravejava, chorava, gritava, fazia perguntas, procurava debaixo, dentro e em cima de todos os acidentes geográficos, implorava por misericórdia, implorava pela morte, mas não conseguia encontrar sua filha amada.
Assim, ela, que havia gerado o crescimento perpétuo, tudo amaldiçoou, todos os campos férteis do mundo, gritando na sua dor.
— Morram! Morram! Morram!
Em decorrência da maldição de Deméter, nenhuma criança poderia nascer, nenhum trigo poderia crescer para se fazer pão, nenhuma flor para as festas, nenhum ramo para os mortos. Tudo ficou murcho e esgotado na terra crestada e nos seios secos.
A própria Deméter não mais se banhava. Seus mantos estavam encharcados de lama, seus cabelos pendiam em cachos imundos. Muito embora a dor no seu coração fosse tremenda, ela não se entregava. Depois de muita investigação, de muitos pedidos e de muitos incidentes, tudo levando a nada, ela afinal perdeu as forças ao lado de um poço numa aldeia onde não era conhecida. E quando recostou seu corpo dolorido na pedra fresca do poço, chegou por ali uma mulher, ou melhor, uma espécie de mulher. E essa mulher chegou dançando até Deméter, balançando os quadris de um jeito que sugeria a relação sexual, e balançando os seios nessa sua pequena dança.
E, quando Deméter a viu, não pôde deixar de sorrir um pouco.
A fêmea que dançava era realmente mágica, pois não tinha nenhum tipo de cabeça, seus mamilos eram seus olhos e sua vulva era sua boca. Foi com essa boquinha que ela começou a regalar Deméter com algumas piadas picantes e engraçadas. Deméter começou a sorrir, depois deu um risinho abafado e em seguida uma boa gargalhada. Juntas, as duas mulheres riram, a pequena deusa do ventre, Baubo e a poderosa deusa mãe da terra, Deméter.
E foi exatamente esse riso que tirou Deméter da sua depressão e lhe deu energia para prosseguir na sua busca pela filha, que acabou em sucesso, com a ajuda de Baubo, da velha Hécate e do sol Hélios. Restituíram Perséfone à sua mãe. O mundo, a terra e o ventre das mulheres voltaram a vicejar.

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Sempre gostei mais dessa pequena Baubo do que de outras deusas na mitologia grega, talvez mais do que de qualquer outra figura, ponto final. Ela sem dúvida tem como origem as deusas do ventre do período neolítico, que são misteriosas figuras sem cabeça e às vezes sem pés e sem braços. É insignificante chamá-las de figuras de fertilidade, porque elas são muito mais do que isso. Elas são talismãs da conversa da mulher  — vocês sabem, aquele tipo de conversa que as mulheres nunca, nunca mesmo, teriam na frente de um homem, a não ser que fosse sob circunstâncias raras. Esse tipo de conversa.
Elas representam sensibilidades e expressões exclusivas em todo o mundo: os seios, e o que é sentido dentro desses bichinhos sensíveis, os lábios da vulva, nos quais a mulher tem sensações que outros podem imaginar, mas que só ela sabe. E a gargalhada é um dos melhores remédios que a mulher pode ter.
Sempre considerei que o  kaffeeklatsch era um remanescente de algum antigo rito feminino de reunião, um ritual de conversa íntima, mulheres falando com suas entranhas, dizendo a verdade, rindo até parecerem bobas, revigoradas, de volta ao lar, sentindo tudo melhor.
Às vezes é difícil conseguir que os homens se afastem para que as mulheres possam ficar a sós. Só sei que antigamente as mulheres estimulavam os homens a fazer uma “excursão de pesca”. Trata-se de um ardil usado pelas mulheres desde tempos imemoriais com o objetivo de fazer com que os homens saíssem por algum tempo a fim de que elas pudessem ficar sozinhas ou só com outras mulheres. As mulheres desejam estar numa atmosfera exclusivamente feminina de vez em quando, seja a sós, seja com outras. Trata-se de um ciclo feminino natural.
A energia masculina é agradável. Ela é mais do que agradável:  ela é exuberante, grandiosa. No entanto, ela às vezes lembra um banquete de chocolates.
Depois, ansiamos por arroz frio e puro durante alguns dias e um caldo quente e simples para limpar a boca. Precisamos fazer isso de vez em quando.
Além do mais, a pequena deusa Baubo nos dá a idéia interessante de que um pouco de obscenidade pode ajudar a desfazer uma depressão. E é verdade que certos tipos de riso, que provêm de todas as histórias que as mulheres contam umas para as outras, histórias que são tão apimentadas ao ponto de serem de total mau gosto, essas histórias ativam a libido. Elas acendem o fogo do interesse da mulher pela vida.
A deusa do ventre e a gargalhada são o que procuramos.
Portanto, acrescente à sua coleção de medicamentos essas histórias típicas de Baubo. Essa  forma diminuta de história é um remédio poderoso. A história engraçada e “suja” pode não só acabar com a depressão como arrancar da raiva o coração irado, deixando a mulher mais feliz do que antes. Experimente e verá.
Agora não posso me estender muito acerca dos dois aspectos seguintes na história de Baubo, pois eles se destinam a ser debatidos em pequenos grupos e somente entre mulheres, mas posso afirmar o seguinte: Baubo tem um outro aspecto: ela vê com os mamilos. É um mistério para os homens, mas as mulheres em seminários concordam entusiasticamente e dizem saber exatamente do que estou falando.
Ver com o mamilos é sem dúvida uma qualidade sensorial. Os mamilos são órgãos psíquicos, sensíveis à temperatura, ao medo, à raiva, ao barulho. Eles são órgãos dos sentidos tanto quando os olhos na cabeça.
E quanto a “falar com a vulva”, trata-se simbolicamente de falar a partir da primae materia, o nível mais básico e honesto da verdade — a boca vital. O que mais haveria a dizer além de que Baubo fala do filão mestre, da mina profunda, literalmente das profundezas. Na história em que Deméter procura sua filha, ninguém sabe que palavras Baubo teria realmente dito a Deméter. Mas podemos ter algumas idéias.

Mulheres Que Correm Com Lobos, por Clarissa Pínkola Estés.

Foto: Barabeke

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