Há um ser que vive no subterrâneo selvagem das naturezas das mulheres. Essa criatura faz parte da nossa natureza sensorial e, como qualquer animal completo, possui seus próprios ciclos naturais e nutritivos. Esse ser é curioso, gregário, transbordante de energia em certas horas, submisso em outras. Ele é sensível a estímulos que envolvam os sentidos: a música, o movimento, o alimento, a bebida, a paz, o silêncio, a beleza, a escuridão.
É esse aspecto da mulher que tem cio. Não um cio voltado exclusivamente para a relação sexual, mas uma espécie de fogo interior cuja chama cresce e depois abaixa, em ciclos. A partir da energia liberada nesse nível, a mulher age como lhe convém. O cio da mulher não é um estado de excitação sexual, mas um estado de intensa consciência sensorial que inclui sua sexualidade, sem se limitar a ela.
Muito poderia ser escrito acerca dos usos e abusos da natureza sensorial feminina e sobre como a mulher e outras pessoas atiçam o fogo à revelia dos seus ritmos naturais ou tentam extingui-lo por completo. No entanto, em vez disso, vamos focalizar um aspecto que é ardente, decididamente selvagem e que transmite um calor que nos mantém aquecidas com boas sensações. Na mulher moderna, essa manifestação sensorial recebeu pouquíssima atenção e, em muitas regiões e períodos, foi totalmente eliminada.
Existe um aspecto da sexualidade feminina que, nos tempos remotos, era chamado de obsceno sagrado, não na acepção que damos hoje em dia ao termo, mas com o significado de uma sabedoria sexual de uma certa forma bem-humorada.
Havia outrora cultos a deusas que eram voltados para uma sexualidade feminina irreverente. Longe de serem depreciativos, eles se dedicavam a ilustrar partes do inconsciente que ainda hoje permanecem misteriosas e em grande parte desconhecidas.
A própria idéia da sexualidade como sagrada e, mais especificamente, da obscenidade como um aspecto da sexualidade sagrada, é vital para a natureza selvática. Havia deusas da obscenidade nas antigas culturas matriarcais — assim denominadas por sua lascívia astuta, porém inocente. Contudo, a linguagem, pelo menos no inglês, dificulta a compreensão das “deusas sujas” como algo que não seja vulgar. Eis o que a palavra sujo e outros termos a ela relacionados significam. A partir desses significados, creio que ficará claro por que motivo essa antiga adoração às deusas foi empurrada para baixo do pano.
Gostaria que vocês examinassem as seguintes definições encontradas em dicionários e chegassem às suas próprias conclusões.
• Dirt (sujeira): Inglês Médio, drit, provavelmente do islandês — excremento.
Significado ampliado para incluir imundície; geralmente, o solo e a poeira, por exemplo, e obscenidade de qualquer natureza, especialmente na fala.
• Dirty word (palavrão): uma palavra obscena, também usada atualmente para designar qualquer coisa que tenha se tornado impopular ou suspeita em termos sociais ou políticos, muitas vezes através de difamação e críticas imerecidas ou por estar em descompasso com as tendências atuais.
• Obscene: do hebraico antigo, ob, significando um mago, uma feiticeira.
Tudo isso, difamação. Existem, porém, fragmentos de histórias em toda a cultura mundial que sobreviveram a vários expurgos. Eles nos informam que o obsceno não é absolutamente vulgar, mas que lembra mais alguma criatura fantástica da natureza que desejamos muito que nos venha visitar e que venha a ser uma das nossas melhores amigas.
Há alguns anos, quando comecei a contar “histórias de deusas sujas”, as mulheres sorriam e depois riam ao ouvir os feitos de mulheres, tanto verdadeiras quanto mitológicas, que haviam usado sua sexualidade, sua sensualidade, para transmitir uma idéia, para amenizar a tristeza, provocar o riso e, desse modo, corrigir algo que estivesse desencaminhado. Eu também me comovi com a forma pela qual as mulheres se aproximavam do limiar do riso a respeito desses assuntos. Elas primeiro precisavam pôr de lado tudo que lhes dizia que isso não seria sinal de boa educação.
Percebi como essa atitude de “boa educação” nas situações erradas realmente sufocava a mulher em vez de permitir que respirasse. Para rir, você precisa ser capaz de soltar o ar e inspirar de novo rapidamente. Sabemos a partir da cinesiologia e de terapias do corpo, como a Hakomi, que respirar significa conhecer as nossas emoções, que, quando queremos parar de sentí-las, interrompemos a respiração, prendendo-a. No riso, a mulher pode começar a respirar de verdade e ao fazê-lo, ela talvez comece a ter sentimentos censurados. E quais poderiam ser esses sentimentos? Bem, eles acabam não sendo sentimentos, mas alívio para os sentimentos e, em alguns casos, curas para os sentimentos, como por exemplo a liberação de lágrimas contidas ou de lembranças esquecidas ou ainda a destruição das amarras que prendiam a personalidade sensual.
Ficou evidente para mim que a importância dessas antigas deusas da obscenidade estava na sua capacidade de soltar o que estava muito preso, de fazer dissipar a melancolia, de trazer ao corpo uma espécie de humor pertencente não ao intelecto, mas ao próprio corpo, de manter desobstruídas as passagens. É o corpo que ri das histórias de coiotes, das histórias de Tio Trungpa, das frases de Mae West, entre outras. As deusas sujas fazem com que uma forma vital de medicamento neurológico e endócrino se espalhe por todo o corpo.
Seguem-se três histórias que encarnam o obsceno nos termos em que estamos usando a palavra, ou seja, uma espécie de encanto sexual/sensual que gera emoções agradáveis. Todas as três podem ser empregadas como histórias ilustrativas. Duas são antigas, e uma é atual. As três tratam das deusas sujas. Chamo-as de sujas porque estiveram muito tempo vagueando debaixo da terra. No sentido positivo, elas pertencem à terra fértil, à lama, ao estrume — à substância criadora da qual se origina toda arte. Na realidade, as deusas sujas representam aquele aspecto da Mulher Selvagem que é tanto sexual quanto sagrado.
Mulheres Que Correm Com Lobos, por Clarissa Pínkola Estés.
Foto: Cup of Cocoa